Entrada da Argentina no BRICS pode dar novo fôlego à demanda pela soberania das ilhas Malvinas?

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que assimetria do poderio militar entre os dois atores envolvidos, e o fato de a questão envolver um país da OTAN, torna improvável o envolvimento do BRICS.

A entrada da Argentina no BRICS pode dar novo impulso no apoio ao país em relação à questão das ilhas Malvinas. É o que afirmou, recentemente, Gustavo Martínez Pandiani, conselheiro do candidato à presidência argentina, Sergio Massa, e provável futuro ministro do Interior.

Em entrevista aos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, especialistas destacam como a entrada no grupo poderia auxiliar na demanda argentina, e que benefícios reacender a questão poderia trazer para o país neste momento.

Para Salvador Schavelzon, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do programa de pós-graduação e integração latino-americana da Universidade de São Paulo (USP), é improvável que a entrada do país no BRICS tenha um impacto militar na questão.

“O BRICS aparece mais como uma aliança econômica. A Argentina não tem mostrado uma perspectiva de aliança geopolítica e, menos ainda, militar. Acredito que não seja esse o espaço onde negociações diplomáticas vão acontecer. Então, a princípio, não vejo mudanças no curto prazo”, explica o professor.

Ele acrescenta que a retomada da soberania sobre o arquipélago é uma demanda difícil, por se tratar de um conflito militar vencido pelo Reino Unido e por não ser um tema atual.

“Teve uma guerra onde a Argentina perdeu e eu acho muito difícil que isso seja revisado reabrindo conversas diplomáticas. É uma demanda histórica, mas certamente não é um tema atual, um tema que esteja tendo conversas ou que tenha tido algum avanço nas últimas décadas”, explica Schavelzon.

Ele destaca que o arquipélago tem uma importância mais afetiva do que estratégica ou mesmo econômica.

“Tem uma importância geopolítica, mas é uma demanda mais com importância simbólica, afetiva, eu diria. As crianças estudam, desde pequenas, na escola, que as Malvinas são argentinas. Agora, uma importância econômica direta, por exemplo, que tem vinculada a petróleo, a pesca, essas coisas, não acredito que seja hoje o que coloca a questão em pauta”, diz Schavelzon.

O especialista compara a demanda argentina pela soberania das ilhas Malvinas à demanda da Bolívia pela recuperação da saída para o mar, perdida para o Chile durante a Guerra do Pacífico, em 1879. “São conflitos complexos, não são de uma questão estratégica de primeira ordem, que esteja em pauta, por exemplo, em relação à economia do país, à macroeconomia.”

Schavelzon diz não acreditar que a questão tenha algum impacto na corrida presidencial, embora reconheça que o posicionamento sobre o tema seja algo de praxe para candidatos.

“Os candidatos já fizeram declarações de praxe, se declararam a favor da soberania. A direita política teve algumas expressões no sentido de minimizar a importância de voltar a essa questão. Mas acredito que é um consenso no setor político. Porque é uma questão sensível para a população, que uma força eleitoral, em geral, vai manifestar apoio. Mas não é uma questão divisora de águas, que seja muito importante na atual disputa eleitoral”, explica.

Porém, ele alerta que a situação econômica atual da Argentina pode levar políticos radicais a usar a questão para galvanizar apoio popular.

“A Argentina está passando uma crise econômica, com inflação, desvalorização da moeda. Isso permitiu que a extrema-direita, que o Javier Milei representa, ganhasse espaço, também pela falência das forças políticas tradicionais. Nesse contexto, há margem para mobilizar a população com propostas que envolvam as emoções dos argentinos. Então, imagino que o tema pode aparecer, mas, sendo realista, não parece existir um contexto para que isso seja discutido formalmente, diplomaticamente, com possibilidade de reversão.”

Em relação ao BRICS, ele reafirma não acreditar que a entrada da Argentina possa alimentar a retomada do conflito com o Reino Unido.

“Não vejo que o BRICS esteja em posição de alimentar esse tipo de conflito. Se fizesse isso, seria abrir mais um foco possível de uma guerra mundial. Não vejo que essa seja a linha dos BRICS e, se fosse, também não vejo com boas perspectivas um armamento dos pequenos conflitos que existem pelo mundo e envolvem países do grupo”, explica o especialista.

Ele acrescenta considerar improvável que Rússia e China, as principais potências do BRICS, tenham interesse em buscar o enfrentamento com o Reino Unido por conta de um território cuja importância é simbólica.

Assimetria de forças entre Reino Unido e Argentina torna inviável um possível enfrentamento

Mateus de Oliveira Pereira, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), doutor em relações internacionais pelo programa de pós-graduação San Tiago Dantas, programa institucional que reúne a Unesp, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a Universidade de Campinas (Unicamp), afirma que o apoio do BRICS na questão, “sem dúvida, é uma das expectativas” da Argentina.

“Acho que [a questão] está colocada até na fala do presidente Alberto Fernández, quando ele comunicou ao país a entrada da Argentina no BRICS. Embora me pareça que, dentro do conjunto geral de questões que envolvem a entrada da Argentina no grupo, a reivindicação sobre as ilhas Malvinas acaba tendo um caráter mais secundário, menos importante do que outras agendas que o país tenta passar dentro do BRICS.”

Questionado sobre a possibilidade de um novo conflito armado entre a Argentina e o Reino Unido, ele afirma ser bastante remota.

Primeiro, porque a guerra pelo território entre as partes, na década de 1980, deixou um trauma muito forte no país.

“A Argentina tem até hoje a memória da Guerra das Malvinas como uma coisa muito forte, uma coisa que mobiliza bastante a sociedade e existe um trauma de fato com relação a isso, pelo tamanho e envergadura daquela derrota”, explica.

Ele acrescenta que “a assimetria de poder militar entre os dois países, que já existia em 1982, somente aumentou”.

“Então, eu não vejo muito como a questão em si poderia se transformar em um conflito armado no futuro próximo. Eventualmente, as ilhas podem acabar se inserindo em outro tipo de conflito armado, de caráter mais amplo, que venha a envolver os dois países. Mas eu não vejo, sinceramente, como é que as Malvinas em si virariam um problema militar de guerra no futuro próximo.”

Pereira avalia que “o que a Argentina tenta fazer o tempo inteiro é levar a questão para as Nações Unidas e tentar resolver a questão diplomaticamente”.

“Agora, nós não podemos ser ingênuos a ponto de achar que a questão se resolve exclusivamente nesses termos [diplomáticos]. No fundo, o que sustenta a posição britânica é o poder militar, que é muito superior ao argentino, e o fato de que as Malvinas não são hoje uma questão que mobilize uma rede de interesses muito ampla para além desses dois países.”

Ele se mostra cético quanto à possibilidade de o BRICS auxiliar diplomaticamente a Argentina em uma possível retomada das Malvinas, embora a entrada no grupo forneça respaldos importantes para o país.

“Os países que fazem parte dos BRICS já apoiam a causa argentina em torno das Malvinas, e isso fortalece, sem dúvida, a posição do país em termos diplomáticos. Agora, sendo muito franco, eu não acho que isso produza alterações significativas no curto e médio prazo, porque o apoio diplomático a Argentina já tem de boa parte do mundo há muitas e muitas décadas. Mas isso não foi suficiente para produzir nenhum tipo de alteração significativa na questão. Porque o fato é que o problema em torno das ilhas não são uma questão que mobilize de maneira muito forte outros atores que não os britânicos e os argentinos”, explica o especialista.

Porém, ele ressalta que, nos últimos anos, a questão vem ganhando importância “por conta da exploração de recursos naturais, como gás natural e petróleo, na plataforma marítima em torno das ilhas. Isso termina sendo um ponto importante da questão atualmente.”

Em relação à forma como o tema é abordado pelos presidenciáveis na Argentina, Pereira avalia que nenhum dos dois têm trazido a questão à mesa de debate com muita intensidade.

“Acho que Javier Milei é muito claramente um candidato que não se importa com noções tradicionais de soberania ou autonomia na política externa. Ele, inclusive, já manifestou que retiraria a Argentina dos BRICS, foi muito hostil com o Brasil, com a China. Não vejo por que haveria de ser diferente no caso das Malvinas. Não me parece que seria um eventual governo Milei um governo que tivesse muito preocupado em fazer alguma coisa para reaver a soberania das ilhas. Muito pelo contrário, talvez ele fosse até no sentido de diminuir a intensidade das reclamações, de pisar no freio e nos esforços do país para recuperar as ilhas”, diz o professor.

“Acho que Sergio Massa vai um pouco no sentido contrário. Embora ele não seja uma figura muito aguerrida na luta em relação às ilhas, acho que a gente poderia esperar uma continuidade do que está sendo feito nesse governo [de Alberto Fernández], que é recuperar o ativismo do país nos canais diplomáticos, principalmente nas Nações Unidas, e tentar forçar o Reino Unido a vir para a mesa para negociar a questão da soberania”, acrescenta.

Assim como Schavelzon, Pereira acha improvável que a questão das Malvinas possa escalar novamente para um conflito militar, e afirma que dificilmente haveria um respaldo nesse sentido de parceiros do BRICS como Brasil, Rússia e China.

“O que existe, em termos de benefício concreto para China e Rússia, que seriam os parceiros militarmente mais relevantes dentro dos BRICS? Qual a vantagem que China e Rússia têm em entrar em uma guerra diretamente contra o Reino Unido, e por extensão contra OTAN? Porque esse é um ponto-chave, uma vez que o Reino Unido é membro da OTAN e a OTAN é um mecanismo de segurança coletiva, uma eventual invasão da Argentina às Malvinas representam abrir uma guerra contra a OTAN. Qual o interesse que Rússia e China têm em entrar em uma guerra contra a OTAN e com o Reino Unido, com possível envolvimento dos Estados Unidos, por causa de umas ilhas que, para eles, não vão fazer nenhuma diferença expressiva? É muito improvável.”

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