Embora a onda anti-establishment tenha resultado na mais ampla renovação do Congresso em duas décadas, remanesce o hábito do parlamento de sobrepor os próprios interesses aos da sociedade. Sob a batuta de velhas raposas, o Centrão, o PT e a “nova política” protagonizaram uma sólida união em plenário quando a pauta esteve centrada no esfacelamento de medidas anticorrupção. Para se perpetuar no poder, congressistas articularam legislações sob medida para sufocar órgãos de investigação, livrar eles mesmos da Lei da Ficha Limpa e ampliar o fértil terreno para a impunidade.
O principal golpe contra o combate à corrupção aconteceu com a aprovação da nova Lei de Improbidade Administrativa, que facilitou a vida dos poderosos. É que o texto excluiu a possibilidade de condenação de políticos e servidores pelos chamados atos culposos — crimes praticados sem intenção —, mesmo que os erros tenham resultado em prejuízo aos cofres públicos, e, de quebra, reduziu prazos prescricionais, resultando na extinção de processos que não forem julgados até quatro anos depois de apresentada a ação. Idealizada entre bochichos no Congresso, a lei teria, entre os beneficiados diretamente, ninguém menos que o presidente da Câmara, Arthur Lira.
O STF conteve danos na semana passada ao barrar um salvo-conduto e impedir que nomes condenados em definitivo por atos culposos sejam absolvidos com base nas novas regras, além de estabelecer que o novo regime prescricional não vale para processos antigos. O Ministério Público, assim, pediu a impugnação de candidaturas de personalidades como o ex-prefeito Cesar Maia e o ex-governador José Roberto Arruda. A situação de Lira, em outra ponta, é nebulosa, já que a sentença que o penalizou por supostos desvios na Assembleia Legislativa de Alagoas está suspensa desde 2018 e o caso aguarda julgamento do Superior Tribunal de Justiça.
Com contornos de uma ação orquestrada, a ofensiva dos manda-chuvas de Brasília contra a agenda anticorrupção começou bem antes da reformulação da Lei de Improbidade. Logo no primeiro ano da legislatura, deputados e senadores emplacaram a Lei de Abuso de Autoridade, que tende a ser facilmente sacada por políticos insatisfeitos com o avanço de apurações. Sem ruborizar a face, ainda desfiguraram o pacote anticrime, proposto pelo Ministério da Justiça, impondo limites aos acordos de delação premiada e a prisões preventivas e criando o “juiz de garantias”, uma figura que, se simpática ao investigado, pode comprometer os rumos do processo.
Novos desmontes
Presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu lamenta os retrocessos e relata preocupação com o futuro. O procurador cita que parlamentares já aventaram a revisão da Lei das Estatais, que está em stand-by e pode retirar a blindagem de empresas públicas da ala política, e sublinha que o deputado Domingos Sávio, correligionário de Bolsonaro, colhe assinaturas para uma proposta que dá aos parlamentares o poder de revogar decisões do STF. “Não são ações isoladas”, crava. “O acompanhamento da sociedade é absolutamente essencial. Muitas vezes, essas iniciativas são anunciadas para testar o grau de vigilância da população. Se o Congresso percebe que ela está desatenta, passa a boiada”, emenda.
O receio não é desarrazoado. O parlamento se prepara para aprovar, logo após as eleições, o novo Código de Processo Penal, norma costurada em um grupo de trabalho comandado por Margarete Coelho, aliada de primeira hora de Lira, que estabelece a investigação do Ministério Público como apenas subsidiária e endurece as regras para mandados de busca e apreensão — o trecho do texto que prevê a prisão em segunda instância tende a ser suprimido. A reformulação do Código Eleitoral, que restringe o poder de fiscalização do TSE sobre contas partidárias, aguarda análise no Senado. Em discursos na campanha, Lula antecipou que, se vencer a disputa presidencial, reformará a Lei da Ficha Limpa, a qual, nos 12 anos de existência, tirou das eleições mais de 4,6 mil políticos enrolados com a Justiça. O bombardeio à pauta anticorrupção garante algo quase impossível em outros momentos: a união de todas as cores e ideologias. O sistema cuida mesmo muito bem de seus pares.