Com o começo da retirada norte-americana do Afeganistão em maio, o Talibã vem retomando seu poder na região e já reconquistou mais de 50 distritos desde então. A Sputnik Brasil ouviu especialista no intuito de entender como pode ficar o país pós-retirada dos EUA e da OTAN.
Desde que os EUA começaram a retirar suas tropas do Afeganistão, a partir do dia 1º de maio, o Talibã (organização proibida na Rússia e diversos países) já tomou mais de 50 dos 370 distritos do país, afirmou na terça-feira (22) a enviada especial da ONU, Deborah Lyons, citada pela Folha de São Paulo.
“Esses distritos que foram tomados estão no entorno das capitais de províncias, sugerindo que o Talibã está se posicionando em uma tentativa de tomar essas capitais uma vez que as forças estrangeiras se retirem completamente”, afirmou a enviada.
Para entender o contexto em que o país se encontra com a ocupação norte-americana e de forças da OTAN indo embora, como ficam os países vizinhos e o futuro do Afeganistão, a Sputnik Brasil ouviu o especialista Jonuel Gonçalves, professor de Relações Internacionais da UFF, Universidade Federal Fluminense e especialista em Políticas da África e do Oriente Médio
Operação Liberdade Duradoura
No dia 7 de outubro de 2001, o então presidente norte-americano, George W. Bush, lançou a operação “Liberdade Duradoura” no Afeganistão, em resposta aos ataques contra as Torres Gêmeas nos EUA em setembro do mesmo ano.
Nessa época, o Talibã governava Cabul e dava refúgio ao iemenita Osama bin Laden e à sua rede Al-Qaeda (organização proibida na Rússia e diversos países), responsáveis pelos ataques de 11 de setembro.
Segundo o especialista, a intervenção militar dos EUA precisava ser de forte impacto, pois só assim Washington conseguiria demonstrar seu poder diante de tamanha violência sofrida em território estadunidense.
“A intervenção militar norte-americana no Afeganistão foi uma resposta aos ataques que a Al-Qaeda executou em pleno coração financeiro dos EUA, e tinha que ser uma intervenção com o mesmo impacto do ataque, [pois por sua magnitude] era necessário que os EUA demonstrassem seu poder, e uma demonstração de poder dissuasiva, pois o inimigo [a Al-Qaeda], não tinha base fixa e o principal apoio oficial que Washington teve para efetuar essa intervenção veio do governo afegão”, explicou Gonçalves.
A entrada norte-americana no país aconteceu em conjunto à OTAN, que mesmo enviando um número de tropas relativamente reduzido, contribuiu bastante com equipamentos de guerra avançados.
© REUTERS / BAZ RATNERSoldados do Exército dos EUA disparam de um morteiro em Candaar, Afeganistão (foto de arquivo)
Tarefa da OTAN na intervenção
Gonçalves conta que a classe política afegã é bastante corrupta e, nos últimos anos, tem demonstrado uma fraca capacidade de mobilização popular, e que mesmo que uma parcela da população apoie o governo, há uma grande massa que valida, na verdade, o Talibã.
Na interpretação do professor, a principal tarefa da OTAN no Afeganistão foi a de tentar conter o grupo terrorista enquanto reformava um Exército nacional afegão para que esse com forças sociais conseguisse politicamente colocar o Talibã em uma posição menor, menos influente. Porém, o especialista acredita que isso não resultou, pois o grupo, mesmo com a presença norte-americana e da organização, continuou a ganhar território.
“O Exército dos EUA e as forças da OTAN estavam incapazes de conter o Talibã, não só em uma contenção política eficaz para reduzir o movimento a uma minoria, mas também reduzir seu controle territorial”, disse Gonçalves.
No entanto, mesmo com a retirada das tropas, a Aliança Atlântica declarou, em maio, que vai continuar a treinar forças de segurança no país. “Decidimos reduzir nossa presença militar no Afeganistão a zero, mas vamos […] aumentar o potencial das forças de segurança afegãs, financiá-las, conduzir treinamento, inclusive fora do país”, disse Jens Stoltenberg, secretário-geral da OTAN, conforme noticiado.
Retirada dos EUA
No dia 14 de abril, o presidente Joe Biden anunciou que retiraria as tropas norte-americanas do Afeganistão a partir do dia 1º de maio até 11 de setembro.
Essa retirada das tropas, que agora se encontra em curso, está acontecendo de maneira mais rápida que a prevista, o que gerou o pedido de aliados europeus aos EUA para que desacelerassem o processo e dessem mais tempo aos aliados da OTAN para também partirem do país, conforme noticiado no dia 8 de maio.
O especialista acredita que, perante a retirada, os EUA elaboraram um cálculo não só político e estratégico, mas também financeiro, pois uma intervenção dessa robustez é de altíssimo custo. “A guerra custa muito dinheiro, e ao custar muito dinheiro ela se torna impopular no país de origem. Além das baixas de soldados, que mesmo que não tenham sido muitas do lado estadunidense, também desgastaram.”
Em setembro de 2019, o Pentágono estimou que o custo das operações chegou a US$ 776 milhões (R$ 3,8 bilhões) desde 2001. No entanto, segundo outros estudos levantados, o custo é muito superior a esse cálculo, já que não se contabilizou a ajuda concedida pelo Departamento de Estado dos EUA, nem as operações dos serviços de inteligência ou os custos médicos com os milhares de veteranos feridos durante a guerra.
Levando em consideração todos esses fatores, pesquisadores calculam que o custo total dos EUA com guerras de combate ao terrorismo no Iraque, Afeganistão e em outros lugares foi de cerca de US$ 6,4 trilhões (R$ 31,6 trilhões), desde 2001, de acordo com a IstoÉ.
Entretanto, apesar da necessidade constatada pelo governo norte-americano para o fim da intervenção, que durou cerca de 20 anos, há também uma grande preocupação de como a população pode ficar. O país, que já é há décadas assolado por questões socioeconômicas precárias, pode cair também em uma miséria mais profunda.
© AP PHOTO / RAHMAT GULUma mulher afegã e seu neném imploram por dinheiro na rodovia Bagram-Cabul, ao norte de Cabul, Afeganistão, 25 de junho de 2021
Reação afegã pós-retirada
Gonçalves considera que a saída das tropas internacionais pode levar o Afeganistão ao colapso na região, pois se desenha algo turbulento, que já teria sido manifestado na própria celebração do Talibã com a retirada das tropas, a partir do momento que o grupo considera que houve vitória de sua parte, já que os EUA estão indo embora.
“Está na lógica de uma guerra, quando o inimigo se retira, gritar vitória. Mas o Talibã [além dessa celebração], fez uns ataques muito arrojados em algumas cidades como Cabul e Candaar, e esses ataques assustaram muito, e pode ser que o grupo tenha ultrapassado os limites da prudência quando se vence. Tem que saber ganhar com humildade”, disse o especialista.
O professor explica que essa “vitória” seguida de ataques assustou o adversário (EUA) e aliados, e que por isso o governo norte-americano está dizendo nesse momento que pode continuar com operações limitadas e pontuais, mas principalmente com enfoque em operações de ataque aéreo, que, segundo Gonçalves, é uma das maiores vulnerabilidades do Talibã.
“O Talibã é muito vulnerável ao ataque aéreo porque ao aproximar-se de diversas cidades no intuito de tomá-las, o grupo atravessa áreas muito semiáridas, descobertas, nas quais ficam sem proteção. Tudo isso leva a crer que a retirada norte-americana não significará uma retirada do ponto de vista militar total, a arma aérea poderá continuar a ser usada, ou com aviões pilotados ou com drones”, explicou o professor.
A explicação de Gonçalves pode ser evidenciada pelo ataque de drones norte-americanos no norte do Afeganistão na sexta-feira (25), quando o Exército dos EUA lançou dois ataques com veículos aéreos não tripulados contra posições do Talibã, nas vésperas do encontro de Joe Biden com o presidente afegão, Ashraf Ghani.
Porém, o especialista destaca que dentro do país ainda há forças democráticas contrárias ao grupo, que durante a ocupação dos EUA e da OTAN tiveram um espaço para se organizar, entretanto, a dificuldade está na população que, influenciada pela propaganda Talibã, enxerga essas forças democráticas como instituições que negam os princípios fundamentais do islamismo.
Sem a influência da intervenção que combatia o Talibã e o apoio popular ao grupo, pode ser um grande desafio para o governo afegão e as forças nacionais estabelecerem uma unidade de governo na região, o que ajudaria no colapso anteriormente citado.
Além disso, no final de maio, o Talibã declarou que qualquer nação vizinha que permita instalação de bases norte-americanas em seu país, enfrentará “infortúnios”. O grupo deixou claro que considerará o estabelecimento dessas bases militares em países da Ásia Central “atos provocativos” e advertiu aos países vizinhos a não permitirem o uso de seu território para que “dificuldades não recaiam sobre aqueles que cometem esses erros”.
© AP PHOTO / RAHMAT GULMilicianos afegãos se juntam às forças de defesa e segurança afegãs durante uma reunião em Cabul, Afeganistão, quarta-feira, 23 de junho de 2021
Contenção internacional
Os Estados Unidos já haviam declarado várias vezes sua intenção de delegar responsabilidades sobre o Afeganistão a outros países. Na primavera, o presidente norte-americano pediu às autoridades de Paquistão, Rússia, China, Índia e Turquia que auxiliem Cabul de forma mais ativa.
Gonçalves acredita que esses países podem vir a desenvolver sim um papel bem mais importante na contenção do Talibã, principalmente o Paquistão, fato que poderia levar a um outro acordo de caráter internacional.
Segundo o especialista, uma maior presença do Paquistão nessa questão também “puxaria” a Índia, pois “ao ver o país paquistanês tomando conta de um dossiê, a Índia se preocupa, vai lá, vai ver. Além de ter muitos refugiados afegãos, o Estado indiano tem muita influência em diversas áreas da vida política afegã”, contou o professor.
Contudo, o mesmo ressalta que a Turquia pode apresentar um quadro diferente, pois Ancara vem intervindo em muitos pontos do mundo, e isso poderia enfraquecer uma possível maior atenção por parte do país turco à questão afegã.
“A Turquia está intervindo na Síria, na Líbia e está sendo acusada de expansionismo, de tentar liderar o mundo muçulmano, e isso pode não ser muito bem-visto por nenhuma das forças internas do Afeganistão, incluindo o Talibã.”
© AP PHOTO / NG HAN GUANMinistros das Relações Exteriores da China, Afeganistão e Paquistão em reunião realizada em Pequim
Encontro entre líderes
Na sexta-feira (25), Joe Biden se encontrou com o presidente afegão, Ashraf Ghani, na Casa Branca para discutir o futuro do Afeganistão, no momento em que a retirada das tropas norte-americanas presentes no país abre um período de imensa incerteza.
O objetivo declarado da Casa Branca era trabalhar em estreita colaboração com o governo de Cabul para garantir que o país afegão “nunca mais se torne um refúgio para grupos terroristas que representam uma ameaça aos Estados Unidos”.
Na reunião, Biden disse que “os Estados Unidos não encerrarão seu apoio ao Afeganistão, ele não vai acabar, vai ser sustentado”. E pediu que parassem com o que chamou de “violência sem sentido” no país, mesmo reconhecendo que seria difícil alcançar esse objetivo. O presidente se referiu aos crescentes ataques do Talibã no país com a retirada das tropas.
Já Ghani disse que não pediu a Biden, durante a reunião, para atrasar a retirada dos EUA do Afeganistão, mas alertou que a mudança terá consequências para ambos os lados.
“A decisão do presidente Biden é uma decisão transformacional que terá resultados importantes tanto para o povo do Afeganistão quanto para o povo dos Estados Unidos na região.”
Além disso, o presidente afegão anunciou que as forças de segurança afegãs recuperaram vários distritos que haviam caído nas mãos do Talibã no sul e no norte do país. Ghani pediu ao grupo terrorista um cessar-fogo e retorno ao processo político.
© AP PHOTO / SUSAN WALSHPresidente Joe Biden (à direita), encontra-se com o presidente afegão Ashraf Ghani no Salão Oval da Casa Branca em Washington, 25 de junho de 2021
Como pode ficar a realidade afegã?
O professor acredita que como resultado de todo esse tempo de ocupação, agora com a retirada, o Afeganistão pode ficar dividido em duas partes: uma faixa territorial abertamente controlada pelo Talibã, que provavelmente pode determinar a criação de um Estado islâmico, e uma outra, com um segundo Estado afegão, gerenciado pelo governo, que consiga manter Cabul.
Gonçalves também considera que os conflitos no país podem se alargar para toda zona, e que por tal preocupação, países como Tajiquistão e o Uzbequistão estão fazendo mobilização militar com base nesse risco. Adicionalmente, países como o Paquistão, Índia e até Repúblicas asiáticas da antiga União Soviética também poderiam ser afetados.
Para o especialista, não há, em um primeiro momento, medidas a serem tomadas que poderiam garantir a paz na região, porque a maior parte das forças com forte influência no país são forças antidemocráticas.
“Fora do quadro democrático, não há compromisso possível. Ou seja, se forem realizadas eleições no Afeganistão, ninguém vai respeitar. Por outro lado, o Talibã é contrário à democracia dizendo que a democracia é governo de partidos, e eles querem impor uma teocracia que é o regime de Deus”, conta o professor.
Diante desses fatores, Golçalves diz que o futuro imediato do Afeganistão é uma grande incógnita, e que pensar a longo prazo, é praticamente impossível.
© AP PHOTO / RAHMAT GULMeninas sentam-se dentro de uma sala de aula com buquês de flores em carteiras vazias em homenagem aos mortos no violento atentado à bomba em 8 de maio contra a escola Syed Al-Shahda. Após a retirada das tropas, ataques como esse estão cada vez mais frequentes no país. Cabul, Afeganistão, 16 de maio de 2021
Após 20 anos, os EUA começaram a retirar as 2.500 tropas que ainda se encontravam no país, em um processo que começou no dia 1º de maio e está previsto para terminar até 11 de setembro. Cerca de 7.000 pessoas de países da OTAN, além de Austrália, Nova Zelândia e Geórgia, também planejam deixar o país até essa data.
Com a saída das tropas, os afegãos começam a sofrer as consequências. Desde o início de maio, combatentes do Talibã têm cercado postos militares na zona rural, e alguns deles têm caído após rendições em grande escala.