Uma horrível descoberta que levou décadas, e para alguns sobreviventes da Kamloops Indian Residential School, no Canadá, a confirmação de que crianças de apenas 3 anos foram enterradas nas dependências da escola somatiza com a tristeza que carregaram por toda a vida.
“Eu perdi meu coração, foi muito doloroso finalmente ouvir o que presumimos que estava acontecendo lá”, disse Harvey McLeod, que frequentou a escola por dois anos no final dos anos 1960, em uma entrevista por telefone para a CNN, nesta sexta-feira (28).
“A história é tão irreal, e ontem se tornou real para muitos de nós nesta comunidade”, disse ele.
A comunidade Tk’emlúps te Secwépemc no interior sul da Colúmbia Britânica, onde a escola estava localizada, divulgou um comunicado na quinta-feira (27) dizendo que uma “perda impensável foi anunciada, mas nunca fora documentada”.
“No fim de semana passada, com a ajuda de um especialista em radar de penetração no solo, a verdade nua e crua das descobertas preliminares veio à tona – a confirmação dos restos mortais de 215 crianças que eram alunos da Escola Residencial Indígena Kamloops”, disse a chefe Rosanne Casimir, da comunidade Tk’emlúps te Secwépemc.
“Pelo que sabemos, essas crianças desaparecidas tiveram mortes não registradas”, disse ela no comunicado.
Por décadas, McLeod disse que ele e ex-alunos se perguntavam o que teria acontecido com amigos e colegas de classe.
“Às vezes as pessoas não voltavam, ficávamos felizes por eles, pensávamos que haviam fugido, sem saber se o fizeram ou o que quer que lhes tenha acontecido”, disse McLeod.
“Haviam discussões que isso pode ter acontecido, que eles poderiam ter morrido”, afirmou ele, acrescentando: “O que eu percebi ontem foi o quão forte eu era, quando menino, o quão forte eu era para estar aqui hoje, porque eu sei que muitas pessoas não foram para casa”
A escola Kamloops Indian Residential foi uma das maiores do Canadá e funcionou do final do século 19 ao final da década de 1970. Foi aberta e administrado pela Igreja Católica até que o governo federal o assumiu no final dos anos 1960.
A instituição fechou permanentemente cerca de uma década depois, e agora abriga um museu e uma instalação comunitária com eventos culturais e memoriais.
Líderes comunitários dizem que a investigação continuará em conjunto com o Gabinete Legista da Colúmbia Britânica e que a comunidade e os funcionários do governo garantirão que os restos mortais sejam protegidos e identificados. A legista-chefe Lisa Lapointe emitiu um comunicado dizendo que seu escritório está no início do processo de coleta de informações.
“Reconhecemos a devastadora, trágica e dolorosa história que o sistema de escolas residenciais canadenses causou a tantos, e nossos pensamentos estão com todos aqueles que estão de luto hoje”, disse ela.
Em 2015, a Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá divulgou um relatório detalhando o legado prejudicial do sistema escolar residencial do país. Milhares de crianças, em sua maioria indígenas, foram separadas de suas famílias e forçadas a frequentar escolas residenciais.
O relatório detalhou décadas de abusos físicos, sexuais e emocionais sofridos por crianças em instituições governamentais e eclesiásticas.
‘Capítulo horrível na história canadense’
“As notícias que restaram foram encontradas na antiga escola residencial Kamloops, partem meu coração – é uma dolorosa lembrança daquele capítulo sombrio e vergonhoso da história de nosso país. Meus pensamentos estão com todos os afetados por esta notícia angustiante. Estamos aqui para ajudá-los”, tuitou o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, nesta sexta-feira.
Em uma entrevista à CNN, Carolyn Bennett, ministra canadense das Relações Coroa-Indígenas, disse que essa revelação fala a todos os canadenses sobre uma “verdade muito dolorosa” e um “capítulo horrível da história canadense”.
“Esta foi a razão pela qual cinco dos apelos à ação da Comissão de Verdade e Reconciliação queriam que lidássemos com as crianças desaparecidas e as sepulturas não marcadas, porque eles sabiam que havia muito mais do que eles puderam averiguar nas audiências,” disse Bennett.
A comissão recomendou 94 apelos à ação. Grupos de direitos indígenas afirmam que poucos deles foram implementados, incluindo a necessidade de saúde e igualdade educacional entre crianças indígenas e não indígenas.
Em 2019, Trudeau disse que ele e seu governo aceitaram que o dano causado aos povos indígenas no Canadá equivalia a genocídio, dizendo na época que o governo avançaria para “acabar com esta tragédia em curso”.
McLeod diz que o sistema de escolas residenciais marcou gerações em sua família e os abusos que ele sofreu na escola em Kamloops o aterrorizaram, sua família e seus colegas de classe.
“O abuso que me aconteceu foi físico, sim, foi sexual, sim, e em 1966 eu era uma pessoa que não queria mais viver, isso me mudou”, disse McLeod, comparando o trauma que sofreu ao de um prisioneiro de guerra.
Ele diz que entrou na escola em 1966, com a maioria de seus irmãos. “Sete de nós fomos ao mesmo tempo, a mesma escola que minha mãe e meu pai frequentaram, não havia opção, era uma exigência, era a lei. E eu só posso imaginar o que minha mãe e meu pai, como eles se sentiram, quando deixaram alguns de nós lá sabendo o que eles vivenciaram naquela escola”, disse.
Como foi documentado pela Comissão de Verdade e Reconciliação, muitas das crianças em escolas residenciais não receberam cuidados médicos adequados, com algumas morrendo prematuramente de doenças como tuberculose.
A comissão estima que mais de 4.000 crianças morreram enquanto frequentavam escolas residenciais durante um período de várias décadas, mas o relatório final da comissão reconhece que era impossível saber o número verdadeiro.
McLeod diz que a descoberta desta semana em sua antiga escola já ajudou os membros da comunidade que ele conhece a discutir o abuso que sofreram e o trauma intergeracional que isso causou.
Ele diz que gostaria de se dedicar à cura e agora quer evitar apontar dedos ou culpar.
“Eu perdoei, perdoei meus pais, perdoei meus abusadores, quebrei a corrente que me prendia naquela escola, não quero mais morar lá. Mas, quero me certificar que as pessoas que não voltaram para casa serão reconhecidas e respeitadas”, finalizou.