A beleza exerce atração e quem exerce atração exerce poder, diz a frase chique. Mas quem ama o feio, bonito lhe parece, diz o fabulário nacional.
Reiteremos qualidades insuspeitas dos fofoqueiros. A primeira é a modéstia: não falam de si, mas dos outros. A segunda é a solidariedade: estão de olho na vida alheia, sobretudo de quem é visto e lembrado. E a terceira é a cautela: falam dos outros pelas costas, uma vez que pela frente poderiam magoá-los.
No reino da fofoca, a intelligentisia e a burritzia nacionais consagraram ambas o conceito de corno, apanágio da fofoca, como aquele que deve ser o último a saber, absolvendo a prevaricação. É verdade que houve algumas tragédias, desde Otelo, de Shakespeare, até o fofoqueiro do whatsapp. Sim, antes a fofoca era criada na rua, sobretudo num botequim, cuja organização certa vez um ministro deturpou, dizendo que o Brasil era desorganizado como um botequim. Houve defesa instantânea e espontânea: diferentemente da economia do Brasil daqueles anos, nunca faltava nada num botequim.
Recentemente a fofoca passou a ser feita em casa, tornou-se outro prazer solitário. Quem fala mal da vida alheia só precisa de um celular. É verdade que já usava o telefone para confidenciar maledicências, mas agora as produz, acrescenta imagem, áudio e trilha sonora, e as distribui em subproduções domésticas.
O escritor Plínio Cabral dizia não ir a velórios para não ser visto, atento a outro ditado popular: quem não é visto não é lembrado. Dizia também que os velórios não eram mais divertidos como antigamente, tinham sido burocratizados, com hora marcada e capelinha no próprio cemitério, uma palavra de origem grega, aliás, que quer dizer dormitório. Daí as metáforas dos desejos de que os mortos descansem em paz, sem que ninguém tenha questionado por que o acréscimo de “em paz”, se já estão descansando. Os vivos portanto celebrem estar isentos do famoso brocardo de mortuis nisi bene, que recomenda não falar mal dos mortos. Dos vivos, sempre se pode.
“A mulher é a melhor parte da natureza humana”, concordava Rubem Fonseca quando fui seu consultor e às vezes confidente em tantos assuntos. Seu aprendiz, eu estava orgulhoso de ver sua frase estampada num cartaz exposto em dezenas de livrarias.
Era no tempo hegemônico das livrarias, hoje a maioria dos leitores compra livros pela internet. “Humana não precisa porque a mulher é a melhor parte também quando comparada a outras obras da Criação, você aí que foi seminarista deve ter até fundamentação teológica para isso”. Era assim o criador de um personagem menor na obra dele, entretanto fascinante e engraçado, Ulpiniano-o-meigo, que faz no colégio uma tabela de preços dos sacramentos e de hóstias com ou sem camarão, de bênçãos especiais etc., uma espécie de simonia avançada para os tempos então modernos, isto é, a década que mudou tudo, a de 1960, em que ele estreara.
O que tem isso a ver primeira-dama com urucubaca? É que voltamos a ter uma primeira-dama bonita, como foram aliás, algumas de suas antecessoras, de que são bons exemplos Maria Thereza Goulart, a 25ª., e Marcela Temer, a 36a. Michelle Bolsonaro é a 37ª, embora esta contagem seja controversa: as esposas de presidentes não empossados teria direito à designação.
De todo modo, os fofoqueiros já decidiram que elas não têm perdão, mesmo sendo representativas da “melhor parte da natureza”, ainda mais se muito belas, principalmente em tempos de urucubaca.
A primeira primeira-dama não era esposa, era sobrinha do presidente dos EUA, James Buchanan. Chamava-se Harriet Lane e cumpriu a função para o tio durante o mandato (1857-1861). A expressão foi registrada na imprensa pela primeira vez em 31 de março de 1860, segundo nos informa o jornalista Marcelo Duarte no seu esplêndido Guia dos Curiosos.
Já urucubaca vem de urubu. Urubu voando por perto é sinal de desgraça. Para os índios, o aviso de sinistro na língua tupi era “uru”, ave, e “wu”, negro. Diferentemente do que informam alguns dicionários, a palavra urucubaca estava no português bem antes de 1918, o ano da gripe espanhola, de sinistra lembrança.
Seu batismo deu-se em marchinha muito cantada no carnaval de 1915, Ó Filomena, de J. Carvalho e J. Praxedes. Os versos ironizavam a ideia de que o presidente tinha de fazer seu sucessor: “A minha sogra morreu em Caxambu/ Foi pela urucubaca/ Que deu o seu Dudu./Ai Filomena/ Se eu fosse como tu/ Tirava a urucubaca/ Da careca do Dudu’. Dudu era o apelido do presidente Hermes Rodrigues da Fonseca.
Cantada até hoje na melodia de Marcha, soldado, cabeça de papel, foi sucesso no carnaval e fracasso na política. Venceslau Brás, o candidato oficial, venceu as eleições presidenciais. “Dudu quando casou/ Quase que levou a breca/ Por causa da urucubaca/ Que ele tinha na careca”. Quem levou a breca foram os autores, os eleitores votaram maciçamente contra a canção, dando 90% dos votos ao vitorioso.
Artur Bernardes, várias vezes deputado e depois presidente da República, mandou prender o escritor Djalma Andrade, seu conterrâneo, autor de jingle que dizia às claras o que era entredito em murmúrios, isto é, que o presidente era homossexual. Para tanto, utilizou a ambiguidade polissêmica do verbo comer: “Quando à cova ele desceu/ Inteiramente despido/ Disse um verme para outro verme:/ Não como, já foi comido”.
Na voz de Chico Alves, o candidato Washington Luís sofreu, mas venceu as eleições de 1926: “Ele é paulista?/ É sim senhor/ Falsificado?/ É sim senhor./ Cabra farrista? É sim senhor./ Ele é estradeiro?/ É sim senhor’. Estradeiro porque dissera que ‘governar é abrir estradas”. Falsificado porque era carioca de Macaé.
Durante a gripe espanhola, foi pronunciada “urubucaca”, mas consolidou-se como urucubaca, designando a mesma coisa: azar, má sorte, ziquizira. Mas é só olhar para as primeiras-damas citadas que a urucubaca, o azar, a ziquizira e a má sorte vão para as cucuias. Se existe mau-olhado, deve existir também o bom-olhado. (fim)