Portugal usa e é usado em jogos diplomáticos com China e EUA, segundo analista

Apesar de a China ter pedido apoio a Portugal para combater a politização sobre a origem da COVID-19 e ter atribuído ao chanceler português uma declaração de que o rastreamento da origem não deve culpar certos países, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) enviou à Sputnik uma nota diferente.

Confrontado com a declaração publicada pela imprensa chinesa e atribuída a Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, o MNE deixou claro o posicionamento do país a favor de uma investigação da Organização Mundial da Saúde (OMS). No mesmo dia em que o chanceler português se reuniu com seu homólogo chinês, Wang Yi, Pequim rejeitou os termos da OMS para uma segunda fase de análise mais aprofundada sobre as origens do novo coronavírus.

“Na reunião com o seu homólogo chinês, o ministro dos Negócios Estrangeiros português exprimiu a posição de que a OMS deve fazer o seu trabalho de investigação sobre as origens da pandemia, no plano técnico-científico, sem interferências políticas e com vista a que fiquemos todos mais bem preparados para combater próximas crises semelhantes”, lê-se na nota do MNE enviada à Sputnik Brasil.

Questionada se confirmava a declaração de que Portugal não vê a China como uma ameaça, frase também atribuída por Pequim ao chanceler português, a pasta comandada por Santos Silva fez questão de reforçar o pertencimento do país à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). 

“Portugal considera a China um país parceiro, com o qual tem interesses comuns, designadamente numa transição bem-sucedida em Macau. O sistema de alianças a que Portugal pertence é naturalmente o da NATO e da União Europeia”, lê-se em outro trecho. 

Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em 20 de maio de 2021

© REUTERS / FRANCISCO SECOAugusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, em 20 de maio de 2021

Em entrevista à Sputnik Brasil, Paulo Duarte, professor das universidades do Minho e Coimbra, Paulo Duarte diz que Portugal tem um desafio muito grande na política externa de fazer o equilíbrio entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China. Doutor em Ciências Políticas e Sociais pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica) e investigador-convidado da Universidade Normal de Pequim, ele elogia o desempenho do MNE.

“Portugal é usado e, ao mesmo tempo, usa da sua diplomacia para saber jogar com ofertas e propostas dos chineses e americanos. Augusto Santos Silva é muito cuidadoso com as palavras. Tem o feito com uma política diplomática exemplar. A mídia chinesa tem todo interesse em trocar um bocadinho as palavras. Não me espanta”, avalia Duarte, em referência às declarações atribuídas por Pequim ao chanceler português.

‘É normal pedir à China para prestar contas’, diz analista

Em uma analogia semântica com a Gripe Espanhola, o especialista ressalta que, em que pese Donald Trump ter apelidado o SARS-CoV-2 de vírus chinês, a origem do novo coronavírus é mesmo chinesa, pois foi o país onde foi detectado primeiramente. Membro do Observatório da China em Portugal, ele considera natural que se queira identificar detalhes a respeito das origens de uma doença que já matou mais de 4,1 milhões de pessoas.

“Isso é uma questão séria demais. Estamos a falar de um vírus que está a mudar a vida do mundo inteiro. É normal que a humanidade, e não só os Estados Unidos, peça à China prestar contas. Do ponto de vista da ética e da moral, a China tem a responsabilidade de não ter protegido o meio ambiente até hoje”, analisa.

Duarte destaca que, apesar de Trump ter lançado uma campanha de suspeita sobre a OMS e, por sua vez, a China ter interesse na organização, ainda se trata de uma entidade com credibilidade. Quando muito, recomenda que duas entidades neutras façam investigações paralelas. Ele faz a ressalva de que Portugal não pode deixar uma entidade ligada aos Estados Unidos investigar as origens do vírus. 

“Portugal não pode preferir nem americanos nem chineses. Tem que preferir a ciência neutra. Então que se coloquem duas entidades a fazer o trabalho de campo, e tiramos as conclusões. Se forem neutras, não podem ser muito diferentes. Creio que não é do interesse de Portugal encobrir uma falsidade. Dou algum benefício da dúvida a Santos Silva em separar aquilo que é ciência daquilo que é politização da ciência”, pondera. 

Indagado pela Sputnik Brasil sobre o discurso chinês de tentar evitar a politização do vírus, mas, ao mesmo tempo, criar dificuldades para os técnicos da OMS para investigação in loco, ele diz que, ao assumir essa posição, a China está indo contra o princípio da transparência. 

E acrescenta que outro problema sério é a proibição de jornalistas estrangeiros no país para tentar confirmar as suspeitas levantadas por Trump, de que o vírus teria sido criado em laboratório. 

“É preciso deixar as entidades credíveis visitarem o país e terem acesso aos espaços e materiais que necessitam para tirar suas conclusões. Não quer dizer que corroborem a tese do vírus chinês. Essa dificuldade que pode estar a ser criada não joga em benefício da China, obviamente”, afirma. 

Paulo Duarte, professor da Universidade do Minho, em Portugal

Paulo Duarte, professor da Universidade do Minho, em Portugal

Duarte, que já foi investigador-convidado do Ministério do Comércio da China, salienta que, por trás do embate sobre a politização do vírus, existe uma guerra comercial muito maior entre chineses e norte-americanos, com os portugueses como fiéis da balança. Ele cita alguns exemplos, como o do leilão do 5G em Portugal, que está se arrastando há meses. 

O especialista recorda que, em setembro do ano passado, George Glass, embaixador norte-americano, afirmou que o país lusitano deveria escolher entre os Estados Unidos e a China, ameaçando retaliações.

“Ora, Portugal nasceu em 1143, mais antigo que os Estados Unidos. Não estamos em condição de aceitar nenhum ultimato. Foi um recado muito duro, mas de que a China aproveita. Santos Silva procura não hostilizar a China, pois percebe que é um parceiro poderoso em Portugal e, ao mesmo tempo, sabe que os Estados Unidos não estão a ver com bom tom a presença da China, seja através dos vistos gold, seja da emissão de dívida pública portuguesa em moeda chinesa”, exemplifica.  

Porto de Sines e Ilha Terceira têm importância geoestratégica 

Por outro lado, Portugal é considerado um país importante do ponto de vista geopolítico e geoestratégico pelos norte-americanos, por conta do Porto de Sines, como porta de entrada do gás dos Estados Unidos para a União Europeia. Em contrapartida, o professor aponta que a base aérea de Lajes, na Ilha Terceira dos Açores, tem sido abandonada gradualmente pelos militares americanos, mas interessa aos chineses.

Isso porque, na vizinha Praia da Vitória, aventa-se a construção de um porto de águas profundas. Segundo Duarte, autor do livro “La nouvelle route de la soie chinoise et l’Asie centrale” (A nova rota da seda chinesa e a Ásia Central), a China tem muito interesse em concretizar a parceria e a sua Rota da Seda Marítima do Século XXI.

“Estamos a assistir um jogo entre uma superpotência, os Estados Unidos, e uma superpotência em formação. Não demorará muito para a China passar o nível econômico dos americanos, e estima-se que em duas décadas atingirá a paridade militar”, prevê.

O professor assinala que já houve três “escalas técnicas” em Lajes com governantes portugueses e chineses e observa que Portugal não adotou uma postura mais pragmática devido aos compromissos com a OTAN. Apesar de frisar que na Cimeira da OTAN, em junho, a China foi apontada como uma ameaça, ele faz a ressalva de que não existem fronteiras proibidas. 

“Se Portugal conseguir ver reconhecida a legitimidade da candidatura que apresentou à ONU de duplicar a sua plataforma marítima, isso significa que há chance de vir a conceder aos chineses a possibilidade de explorar o fundo do mar. Quem manda nisso? Vamos negar e fechar portas aos chineses se for uma proposta milionária só porque os EUA nos ameaçam?”, questiona retoricamente. 

Porto de Sines, em Portugal, é alvo de interesse dos Estados Unidos e da China

© SPUTNIK / CAROLINE RIBEIROPorto de Sines, em Portugal, é alvo de interesse dos Estados Unidos e da China

De acordo com ele, essa é uma questão que já está tendo muita ponderação na UE: até que ponto o dinheiro pode comprar tudo? Apesar de reconhecer que Portugal é um país pequeno, Duarte avalia que o país tem um peso diplomático enorme, não só por ter encerrado recentemente o mandato rotativo da presidência do Conselho da UE, mas também por ter um português (António Guterres) como secretário-geral da ONU.

Segundo o investigador, esse peso pende mais para o lado norte-americano da balança, da qual Portugal é fiel. Mas a fidelidade tem o seu preço e pode ter também os dias (ou anos) contados.

“Portugal não coloca a relação com a China à frente da relação com os Estados Unidos. Se houver dois competidores, um americano e um chinês, não há dúvidas de que Portugal vai privilegiar um americano”, conclui.

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