Poder dos EUA para impedir acordo nuclear entre Brasil e França diminui, diz almirante

Brasil e França realizaram reunião sigilosa para aprofundar acordo sobre submarino nuclear brasileiro. Depois de perder influência na África e ter ficado às margens da aliança AUKUS, França pode estar precisando tanto desse acordo quanto a Marinha brasileira, acredita especialista ouvido pela Sputnik Brasil.

Brasil realizou reuniões sigilosas com a França para acelerar o processo de transferência de tecnologia para o submarino nuclear brasileiro.

O chefe de Estado-Maior da França, brigadeiro Fabien Mandon, se reuniu com o almirante de esquadra Petrônio Aguiar em Brasília em 22 de setembro. O brasileiro deve viajar à França em breve para dar prosseguimento às negociações, apurou a Folha de São Paulo.

As negociações têm como objetivo ampliar o acordo assinado em 2008, que prevê a construção de quatro submarinos convencionais da classe Scorpène e um submarino de propulsão nuclear.

“O acordo selado com a França em 2008 diz claramente que deve haver transferência de tecnologia, tanto para a construção dos submarinos convencionais, quanto para o de propulsão nuclear”, disse o almirante Antonio Ruy Silva, membro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da USP, à Sputnik Brasil. “O que se espera é que esse novo acordo detalhe aspectos relacionados ao submarino nuclear, já que nos primeiros anos houve um foco maior na construção dos submarinos convencionais.”

O texto do acordo prevê transferência de tecnologia e assistência técnica em todas as fases da construção dos submarinos, desde sua concepção inicial, passando pela construção até o comissionamento. No entanto, o acordo não inclui a transferência de tecnologia nuclear ao Brasil.

Submarino de classe Scorpène S40 Riachuelo, o primeiro do Prosub a ser lançado ao mar, em 2018 - Sputnik Brasil, 1920, 26.10.2023

Submarino de classe Scorpène S40 Riachuelo, o primeiro do Prosub a ser lançado ao mar, em 2018

© Foto / Divulgação / Marinha do Brasil

Apesar dos avanços na construção do reator nuclear para o submarino, a Marinha brasileira ainda encontra dificuldades no processo de sua miniaturização e no desenvolvimento de peças e sistemas de acessórios.

“As questões centrais são o casco, ligas especiais resistentes a vazamento de resíduos nucleares, e a questão da miniaturização do reator”, disse o professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Francisco Carlos Teixeira, à Sputnik Brasil. “O Brasil já consegue construir qualquer reator nuclear. Mas a miniaturização, para que ele possa caber em uma nau e funcionar, ainda não foi concluída.”

França dá o troco

Os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil estão otimistas quanto às negociações e acreditam que a França tem interesse em aprofundar a parceria para a construção do submarino nuclear Álvaro Alberto.

A indústria nuclear francesa será beneficiada pelos pedidos de compra realizados pelo Brasil, uma vez que recentemente perdeu uma importante cliente: a Austrália. Em 2011, a Austrália cancelou contratos estimados em US$ 66 bilhões com a França para a construção de seu submarino nuclear, em favor de uma parceria com EUA e Reino Unido, formalizada no âmbito da AUKUS.

“Os franceses se sentiram traídos pelos seus parceiros EUA e Reino Unido, uma vez que tinham tudo acertado com a Austrália”, relatou Ruy Silva. “Macron ficou enfurecido, e deixou isso bem claro publicamente.”

A negociação de novos contratos com o Brasil poderia compensar os prejuízos econômicos – e políticos – gerados pela AUKUS à indústria nuclear francesa.

O presidente Joe Biden, ao centro, fala enquanto o primeiro-ministro australiano Anthony Albanese, à esquerda, e o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak escutam na base naval de Point Loma, em San Diego, 13 de março de 2023, ao revelarem o AUKUS, um pacto trilateral de segurança entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos. - Sputnik Brasil, 1920, 26.10.2023

O presidente Joe Biden, ao centro, fala enquanto o primeiro-ministro australiano Anthony Albanese, à esquerda, e o primeiro-ministro britânico Rishi Sunak escutam na base naval de Point Loma, em San Diego, 13 de março de 2023, ao revelarem o AUKUS, um pacto trilateral de segurança entre Austrália, Reino Unido e Estados Unidos.

© AP Photo / Denis Poroy

“O acordo viabiliza a indústria nuclear e de armamentos da França, que não pode ter somente o Estado francês como cliente”, considerou o professor Teixeira. “A venda da tecnologia dos submarinos ao estrangeiro viabiliza o próprio complexo industrial militar francês.”

O almirante Ruy Silva concorda, e lembra que a França poderá prestar serviços de manutenção e assistência técnica para o Brasil durante toda a vida útil dos submarinos.

“Os contatos serão mantidos por décadas, gerando uma considerável aproximação entre as Marinhas da França e do Brasil”, notou o almirante.

França ainda estaria carente de projetos bem-sucedidos de cooperação internacional, após uma série de revezes que sofreu na África, onde “países que eram tutelados por ela de maneira neocolonial sofreram golpes de Estado”, lembrou Teixeira.

O presidente francês, Emmanuel Macron - Sputnik Brasil, 1920, 26.10.2023

O presidente francês, Emmanuel Macron

© Sputnik / Irina Kalashnikova

Macron está sem política externa. A França tomou um tombo na África e outro tombo no Pacífico, perdendo seu acordo com a Austrália”, disse o professor da UFRJ. “Nesse contexto, faz sentido para a França voltar-se para a América Latina e para a sua maior economia, o Brasil. A França precisa disso para poder continuar dizendo que é uma potência internacional.”

Estraga prazeres

Apesar de contexto favorável ao sucesso das negociações entre Paris e Brasília, as partes devem lidar com pressões dos EUA para que o acordo não prospere, disseram os especialistas à Sputnik Brasil.

“O maior obstáculo para a conclusão do acordo é a pressão dos EUA. Eles não querem que a indústria nuclear francesa avance, nem que o Brasil implante uma indústria nuclear viável”, considerou o Teixeira.

Além disso, Washington “não quer que o Brasil esteja dotado de uma arma tão eficaz, como o submarino de propulsão nuclear”.

De fato, o submarino nuclear seria um passo importante rumo à implementação da doutrina de negação do uso do Atlântico Sul ao inimigo, prevista na Política de Defesa Nacional Brasileira. Atualmente, o Reino Unido ainda mantém domínio colonial sobre ilhas no oceano Atlântico, enquanto a 4ª Frota Naval dos EUA realiza patrulhas nas proximidades da costa brasileira.

Fragata Independência (F-44) retorna ao Brasil após concluir missão de paz. Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2020 - Sputnik Brasil, 1920, 26.10.2023

Fragata Independência (F-44) retorna ao Brasil após concluir missão de paz. Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2020

© Tânia Rêgo/Agência Brasil

Por outro lado, a capacidade de Washington de obstaculizar o acordo entre Brasil e França pode estar enfraquecida, acredita o almirante Ruy Silva.

Para ele, o contexto internacional de transição hegemônica, na qual o poder dos EUA cede em favor de outras potências, garante maior margem de manobra aos países médios.

“A emergência de novos polos de poder confere mais liberdade de ação para a França e Brasil. Então as pressões contrárias a essa aproximação podem diminuir”, concluiu o especialista.

O acordo para a transferência de tecnologia de submarinos convencionais e nuclear entre Brasil e França assinado em 2008 tem valor estimado em R$ 40 bilhões. Dois dos quatro submarinos convencionais previstos já foram construídos. A expectativa atual da Marinha brasileira é que o reator nuclear naval fique pronto em 2027 e o submarino nuclear Álvaro Alberto em 2033.

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