Livro revela que militares tiveram um papel importante para desmontar o plano golpista do ex-presidente americano
Em 6 de janeiro deste ano, a democracia dos Estados Unidos viveu um dos seus momentos mais dramáticos, quando milhares de extremistas incitados pelo ex-presidente Donald Trump invadiram o Capitólio em Washington, tentando impedir que o Congresso confirmasse a vitória eleitoral de Joe Biden. Essas imagens foram acompanhadas por todo o mundo. O que não se sabia é o que acaba de ser revelado pelos militares: eles fizeram todo o possível para esvaziar a rebelião e garantir uma transição pacífica de poderes. A informação veio à tona por meio do ex-chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, general Mark Milley, em depoimento aos repórteres Carol Leonnig e Philip Rucker, do jornal “The Washington Post”. Os jornalistas lançaram na terça-feira, 20, um livro detalhado e contundente sobre o último ano de Trump na presidência, “Só Eu Posso Resolver Isso – O Catastrófico Ano Final de Donald J. Trump” (I alone can fix it – Donald J. Trump’s Catastrophic Final Year).
Leonnig e Rucker entrevistaram mais de 400 pessoas para escrever o livro. A narrativa mostrou, para alívio dos defensores da democracia, que nos EUA os militares permanecem leais à Constituição e ao Estado de Direito, e não ao presidente. Alertado pelo então secretário do Exército, Ryan D. McCarty, de que 25 mil invasores agressivos estavam no Capitólio, Milley pediu a intervenção de 8 mil policiais de Washington para que expulsassem os extremistas. O general também convocou a Guarda Nacional do Distrito de Colúmbia e dos Estados vizinhos. Milley, um estudioso de história, comparou os eventos de 6 de janeiro ao nazismo. “No Pentágono, o general Mark Milley assistia à TV, profundamente perturbado com a retórica. Ele via paralelos entre as posições de Trump sobre fraude eleitoral e a insistência de Adolf Hitler junto aos seus seguidores no congresso nazista em Nuremberg, de que era uma vítima e também o salvador da multidão”, conta trecho do capítulo 2. “Este é um momento Reichstag. O evangelho de Hitler”, disse Milley aos colegas de farda. Após o Congresso americano ser desocupado, o general afirmou que Biden tomaria posse, como era o desejo das urnas: “A transição de poder será pacífica em 20 de janeiro, venham os céus ou o inferno”.
“Os insurgentes invadiram o Capitólio e ficou claro que eles procuravam o vice-presidente. Alguns gritavam: enforquem Mike Pence. Enquanto isso, Trump escrevia no Twitter: Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria ter sido feito” Trecho do capítulo 2 do livro
Sua ação foi decisiva não apenas no dia da invasão do Capitólio. No dia 14, Milley coordenou uma manobra militar em preparação para a posse de Biden e deixou claro para os outros militares a sua visão sobre Trump e os extremistas republicanos: “Caros, é o seguinte: estes sujeitos são nazistas, são os Proud Boys. Eles são a mesma gente contra quem nós lutamos na 2ª Guerra Mundial”, disse. A atitude de Milley era um problema para o ex-presidente. Em um comunicado, Trump respondeu que não tentou dar um golpe de Estado, mas que se tivesse tentado, “não o faria com o general Milley”.
Lealdade à Constituição
“Trump tentou dar um golpe político, não um golpe militar. Foi um fato grave nos EUA. Houve uma insurreição. Os militares têm uma noção muito forte do seu papel institucional. A moldura mental do militar americano não envolve a política interna”, disse à ISTOÉ Hussein Kalout, cientista político da Universidade de Harvard. Kalout diz que Trump também tentou instrumentalizar o Judiciário, sem sucesso. Além dos militares, o ex-vice-presidente Mike Pence e o senador Mitch McConnell, então líder republicano do Senado, também emergem no livro como personagens que resistiram às pressões de Trump. Pence refugiou-se nos subterrâneos do Capitólio em 6 de janeiro, aguardou a multidão ser expulsa, e mais tarde liderou a confirmação de Biden.
Passados mais de seis meses desse episódio, surpreende que Trump mantenha grande controle sobre o Partido Republicano, ainda que tenha caído em descrédito e sua voz tenha praticamente sumido pelo banimento imposto pelas redes sociais. Mas é reconfortante atestar que os militares tiveram um papel decisivo para manter a ordem constitucional, mesmo diante de um levante populista. Isso levanta uma questão significativa para o Brasil: aqui, os fardados demonstrariam o mesmo respeito à democracia?