Onda ‘progressista’ na América Latina? Analista rejeita hipótese e cita ‘erros da direita’

Embora Maria Elena Rodriguez, do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio), tenha dito à Sputnik Brasil que não se pode falar em onda progressista no continente latino, a eleição de alguns políticos de esquerda pela região, como Gabriel Boric no Chile (2021) e Gustavo Petro na Colômbia (2022), colocou uma pulga atrás da orelha da direita e dos conservadores.

Com Pedro Castillo (no Peru), Luis Arce (na Bolívia) e Alberto Fernández (na Argentina), outros que também foram eleitos em meio à volta de políticos de esquerda ao poder no continente, muitos apontaram que a política regional caminhava para um grande bloco latino alinhado, com boas perspectivas para o Mercosul e o continente como um importante player nos fóruns multilaterais.

A questão, entretanto, como apontou a especialista, é que a “esquerda na América Latina é muito heterogênea. Por isso, não podemos falar em onda progressista. Não podemos colocar governos tão distintos na mesma prateleira, como Nicarágua e Chile“. Ela apontou que “são modelos distintos, com necessidades diferentes, e colocá-los como uma coisa só é perigosopois não diz muito sobre as análises que podem ser feitas“.

De fato, dos 12 países da região, apenas quatro, incluindo o Brasil, têm um governante declaradamente de direita. Os demais são liderados pela esquerda. Entretanto, como apontou a especialista, há grandes diferenças entre as esquerdas que governam a Nicarágua e a Colômbia. Para ela, é interessante notar que a chamada “onda rosa” tem governos que “respondem a uma série de problemas e necessidades que levaram anos para serem resolvidos na região”.

“Pensávamos que governos progressistas, no início dos anos 2000, poderiam resolver. Embora eles tenham mudado algumas coisas, não foram feitas mudanças estruturais, e isso abriu caminho para governos de direita na década seguinte”, disse.

Ela explicou que, apesar dos “castigos nas passagens desses governos, marcados em muitos lugares pela corrupção ou por denúncias semelhantes“, há um fator fundamental nos governos de direita na América Latina que sucederam os de esquerda: “Não há luta contra a assimetria social do continente, não há luta contra a desigualdade. A ideia deles é gerar riqueza, e esse é um contraponto interessante da esquerda na região”.

Para ela, a crise social e econômica a partir da pandemia de COVID-19, que deflagrou índices de inflação recordes e aumento da pobreza, agravou as desigualdades e expôs as deficiências dos governos no continente. Para Maria Elena Rodriguez, “esse foi um erro também da direita, que possibilitou a ascensão da esquerda“.

Traduzindo a questão em números, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) projeta um crescimento de 1,8% para a América Latina e o Caribe em 2022, apesar do aumento da pobreza (de 29,8% em 2018 para 33,7% em 2022) e da pobreza extrema (10,4% em 2018 para 14,9% em 2022).

Movimentos sociais e meio ambiente: a cartilha progressista

A chegada de diversos governos de esquerda, segundo a professora ouvida pela Sputnik, “é importante, porque faz parte de um processo histórico. Na Colômbia, por exemplo, e no Chile, foram três anos de protestos e agitação social. Foram anos de demandas da sociedade e mobilização popular. Esse ímpeto dos movimentos sociais que demandam mudanças os governos de esquerda souberam ouvir, e agora estão de volta ao poder. Converteram os anseios da sociedade em uma possibilidade de resposta”.

Na opinião dela, o caso mais emblemático é o do governo de Iván Duque, na Colômbia, cujas ações levaram a um grande descontentamento social. Gustavo Petro tornou-se no dia 19 o primeiro presidente de esquerda da história da Colômbia. Ex-guerrilheiro, ele prometeu reformas econômicas e sociais para combater a pobreza, a desigualdade e a exclusão social, problemas que assolam a população colombiana há anos, mas que se agravaram com a COVID-19 no último ano e com as reformas liberais da última década.

Segundo estimativas, cerca de 42% dos colombianos estão na pobreza. Em 2019, a economia colombiana começou a apresentar os primeiros sinais de crise, e manifestações tomaram as ruas. O peso colombiano bateu recordes de desvalorização. Pela primeira vez em anos, a capacidade de pagamento e emissão da dívida do país foi questionada. Em 2021, o país voltou às ruas, desta vez revoltado com a política reformista do governo. Atos que levaram milhares de pessoas a protestar resultaram na morte de dezenas, com uma centena de presos e uma ferida aberta na política do país.

Quem soube aproveitar esse cenário foi o líder de esquerda Gustavo Petro. Em seu discurso no dia da vitória, ele declarou que “a mudança que propomos hoje é derrubar esse regime de corrupção, tirar o ladrão e o assassino do poder“.

Com uma proposta de governo bastante voltada para ações internas na Colômbia, ele pretende garantir uma aposentadoria mínima para os mais pobres, transferir fundos de pensões particulares para o fundo do governo e usar esse montante para financiar projetos e políticas públicas.

Maria Elena Rodriguez entende que a “esquerda terá um grande desafio no continente, em razão das limitações econômicas e de apoio no Congresso”. Ela observou que a “região teve raiva, por isso houve uma necessidade de mudança tão brusca”, e acrescentou que a América Latina “não tem direitos fundamentais básicos, e há a sensação generalizada [e constatada por estudos] de que as elites enriqueceram durante a crise e os pobres ficaram mais pobres“.

Para ela, se há uma característica marcante dessa nova ascensão da esquerda é que “não há projeto homogêneo, e a chegada dos progressistas é um movimento de baixo para cima, pois é sustentado por ondas de mobilização social”.

Outro fato importante que precisa ser levado em consideração na eleição de Gustavo Petro e nas futuras análises sobre a chamada “onda rosa” é que ao seu lado, no palanque da vitória, estava a advogada e ativista ambiental Francia Márquez, eleita a primeira pessoa negra a ocupar a vice-presidência da Colômbia. É importante frisar sua representatividade para afrodescendentes, que compõem a maior parte (60%) dos que vivem abaixo da linha da pobreza.

Mas Francia Márquez é também dona de um prêmio Goldman (em 2018, por sua luta contra a exploração mineral) e uma das mais importantes referências na América Latina na luta pela preservação do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores. E como quase toda ambientalista latina, ela foi alvo de pistoleiros e traficantes: em 2019, sobreviveu a um ataque com granadas e tiros de fuzil.

Esse, aliás, é outro ponto que para Maria Elena Rodriguez precisa ser levado em consideração em análises sobre a dita ascensão da esquerda no continente. Segundo ela, a esquerda que chega com Boric e Petro apresenta uma “agenda mais moderada, pois não é uma esquerda tradicional. Ela é moderna, com pautas e projetos mais contemporâneos, que têm a ver com as questões ambientais, com a Amazônia“.

“Há menos criticas à institucionalidade e há uma agenda mais controlada, de seguir as regras. Algo totalmente razoável. Não há mais o sentimento anti-EUA de outros tempos, e isso também indica uma moderação no discurso”, avaliou a especialista.

De forma conclusiva, ela disse que é necessário chamar a atenção para o ganho para a América Latina a partir dessa nova “agenda de transição energética, alinhada com os interesses globais, com o feminismo, o antirracismo, que é muito importante. Essa agenda deve estar entrelaçada para que a América Latina seja um continente que fala, que tem propostas. Isso seria de fato muito interessante”.

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