Desdolarização deve ser objetivo de qualquer país que queira ter ‘direito à voz’, diz economista

A pandemia desacelerou os esforços para substituir o dólar como moeda dominante no sistema internacional. Mas qualquer país que queira ser de fato independente deveria perseguir esse objetivo, diz economista.

O dólar norte-americano é a moeda dominante na economia internacional moderna. Cerca de 78.5% das trocas comerciais são feitas utilizando a moeda dos EUA, que ainda é utilizada pela maioria dos países do mundo como moeda internacional de reserva. 

A desdolarização é um objetivo de longo prazo da política econômica da Rússia, estipulado em plano governamental de 2018.

“A desdolarização é um processo necessário não só para a Rússia, como para qualquer país que queira ter direito à voz internacionalmente”, disse o economista do Instituto Europa da Academia de Ciências da Rússia, Kirill Gusev, à Sputnik Brasil.

“A dependência do dólar transforma o país em um satélite dos EUA, retirando a sua possibilidade de decidir sobre assuntos econômicos e financeiros de forma independente”, acredita Gusev.

Estátua na frente da Bolsa de Valores, em Nova York, EUA, 23 de março de 2021

© AP PHOTO / MARY ALTAFFEREstátua na frente da Bolsa de Valores, em Nova York, EUA, 23 de março de 2021

No entanto, a substituição do dólar como moeda dominante internacional é um processo “árduo”, que exige cooperação internacional.

“Não acredito que a Rússia poderia, sozinha, empreender esse esforço”, disse Gusev. “Foi uma luta e tanto para o dólar dominar todas as esferas da vida econômica, e ele não vai abrir mão dessa posição com facilidade”.

Segundo ele, “os países que quiserem encontrar uma saída devem fazer acordos mutualmente benéficos para criar, incialmente, um sistema alternativo, e depois um sistema dominante que com o tempo substituísse o dólar”.

“Precisamos entender que esse esforço sofrerá a oposição dos EUA, para o qual o controle do sistema não é somente benéfico porque traz um ganho financeiro enorme, mas também por que garante o controle sob os processos econômicos mundiais”, alertou Gusev.

Para ele, “o grupo do BRICS é o candidato com mais chances para enfrentar os EUA nessa questão”.

O agrupamento seguiu por esse caminho ao criar o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que sofreu “grande oposição das potências ocidentais, principalmente dos EUA”.

Presidentes da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladimir Putin, conversam com auxílio de intérpretes durante encontro dos líderes do BRICS no Itamaraty, em Brasília, 14 de novembro de 2019 (foto de arquivo)

© AP PHOTO / PAVEL GOLOVKINPresidentes da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladimir Putin, conversam com auxílio de intérpretes durante encontro dos líderes do BRICS no Itamaraty, em Brasília, 14 de novembro de 2019 (foto de arquivo)

“O banco já está maduro, fornecendo crédito aos países membros para aplacar os efeitos negativos do novo coronavírus, mas ainda estamos longe de poder dizer que o Novo Banco de Desenvolvimento […] possa concorrer com as estruturas criadas com base no dólar”, concedeu o economista.

Apesar dos sucessos, “todos os países membros do BRICS são grandes e têm seus próprios interesses estratégicos de longo prazo, que nem sempre coincidem”. Isso não favorece o debate de questões fundamentais, como a criação de “uma moeda única, ou sistema único de pagamentos”.

Além da vontade política, os governos também devem fazer um esforço para que “seja benéfico às empresas optarem pelas moedas nacionais, em detrimento do dólar. Isso é muito importante”.

Desdolarização na Rússia

Apesar da vontade política de Moscou de adquirir certa independência do dólar, existem muitos obstáculos a serem superados até que “resultados significativos sejam atingidos”.

A própria estrutura da economia russa, “baseada na exportação de commodities” negociadas em dólar, seria um obstáculo à desdolarização a curto prazo.

Cartões de crédito da bandeira russa Mir, alternativa às ocidentais Visa e Mastercard (foto de arquivo)

© SPUTNIK / ALEKSEI FILIPOVCartões de crédito da bandeira russa “Mir”, alternativa às ocidentais “Visa” e “Mastercard” (foto de arquivo)

Para Gusev, é necessário investir no “desenvolvimento de exportação de produtos manufaturados e de alta tecnologia, que não precisem ser vendidos em bolsas valores de commodities, que são controladas pela Europa Ocidental e pelos EUA”.

“O lado positivo que podemos notar nesse caso é o aumento da parcela de ouro nas reservas dos Bancos Centrais de diversos países, inclusive nas reservas da Rússia”, disse o especialista. 

O fator pandemia também atrasa o processo de desdolarização econômica, ao dificultar o contato entre os países, com fechamento de fronteiras e atrasos na implementação de acordos políticos e econômicos.

“A pandemia gerou impacto negativo na formação de polos de poder alternativos no mundo que poderiam fazer frente aos EUA como frente dominante na economia mundial”, acredita Gusev.

“É importante enfatizar que o dólar chegou aonde está pelas vias militares: no final da Segunda Guerra Mundial, e tanto os países vencidos, quanto os vencedores […] dependiam financeiramente dos EUA”.

Sede do Banco de Compensações Internacionais, um dos pilares da arquitetura financeira internacional, em Basel, Suíça (foto de arquivo)

© AFP 2021 / FABRICE COFFRINISede do Banco de Compensações Internacionais, um dos pilares da arquitetura financeira internacional, em Basel, Suíça (foto de arquivo)

Esse contexto garantiu que “a hegemonia do dólar se tornasse um fato consumado”.

“Hoje, a situação não é essa. Mesmo a pandemia, com todos os seus problemas e limitações que traz, não criou uma situação de tal privação no mundo, a ponto de um país poder ditar as suas condições aos demais “, disse Gusev.

Portanto, “seria mais lógico substituir o dólar através de um processo gradual”, no qual a moeda norte-americana fosse substituída “paulatinamente por um sistema alternativo”.

Presidentes da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladimir Putin, durante encontro do BRICS no Itamaraty, Brasília, 14 de novembro de 2019 (foto de arquivo)

© AP PHOTO / ERALDO PERESPresidentes da China, Xi Jinping, e da Rússia, Vladimir Putin, durante encontro do BRICS no Itamaraty, Brasília, 14 de novembro de 2019 (foto de arquivo)

Como únicos países capazes de formar um “grupo econômico forte”, o BRICS teria capacidade de formar um “sistema de pagamentos e cartões de crédito próprio” e finalmente “ganhar a voz devida” no sistema econômico internacional”, concluiu o especialista.

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