Como ficam relações brasileiras com a Alemanha entrando em novos trilhos? Entenda

Enquanto a aliança dos partidos alemães chegou a acordo para formar na Alemanha um governo de coalizão liderado por Olaf Scholz como novo chanceler, a Sputnik explica em que pé estão as relações políticas Brasil-Alemanha e o que pode ser esperado da mudança de poder no país.

Em 25 de novembro, os partidos do centro e esquerda da Alemanha, dois meses após a vitória do Partido Social-Democrata (SPD) nas eleições contra o bloco conservador de Angela Merkel, chegaram a um acordo para formar um novo governo no país. Olaf Scholz, vice-chanceler e atual ministro das Finanças, será o nono chanceler da Alemanha.Para entender as perspectivas na evolução das relações entre as duas nações, a Sputnik Brasil entrevistou Arnaldo Cardoso, cientista político e analista de política internacional formado pela PUC-SP.O Brasil e a Alemanha têm uma histórica relação no âmbito econômico e comercial, e também na cooperação técnica para campos em que o Brasil é carente de investimento e de transferência de conhecimentos. O que é bastante pertinente hoje é também a cooperação no campo da preservação ambiental.

A Alemanha desempenha um papel importante como agente declaradamente disposto a cooperar na preservação do meio ambiente, financiando durante anos projetos nesse campo, não só no espaço europeu, o que também é do interesse do Brasil.”A gente pode identificar que, para além do comércio, para além de investimentos, tem um campo ainda a ser explorado; que nos últimos anos, infelizmente, por acentuadas divergências políticas, nós vimos esse campo retroceder ao invés de avançar”, enfatizou o analista.

Negligência deliberada ou mera precariedade?

Há cerca de um mês, na reunião do G20 em Roma, Itália, aconteceu um episódio que atraiu atenção das mídias: o presidente Jair Bolsonaro se aproximou de um grupo de líderes mundiais, entre os quais estava também Olaf Scholz, para conversar com o presidente turco Recep Erdogan. Afora um cumprimento protocolar, Bolsonaro não conversou mais com o futuro chanceler alemão, se dirigindo apenas a Erdogan. Em alguns segundos, Scholz virou as costas para o presidente brasileiro e iniciou uma conversa com o premiê britânico Boris Johnson.

Presidente Jair Bolsonaro chega à cúpula do G20 em Roma, Itália, 30 de outubro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 01.12.2021

Presidente Jair Bolsonaro chega à cúpula do G20 em Roma, Itália, 30 de outubro de 2021© AP Photo / Domenico Stinellis

Existe uma probabilidade de que essa cena possa interferir nas relações entre os dois países. Mais do que isso, possivelmente a ação do presidente brasileiro foi valorizada no sentido de se acreditar haver uma ideia prévia naquela ação. Porém, o professor acredita que naqueles eventos há muito mais de precariedade na ação do presidente do que propriamente uma ação política deliberada de rejeição do diálogo com o próximo chanceler alemão.Há três anos que o Brasil está sofrendo consequências da política externa brasileira ou, como preferiu dizer o professor, “nada falta na política externa brasileira” de uma ação conduzida “com bastante precariedade, com voluntarismo e no sentido aposto ao que o Brasil precisa” na arena internacional.Tradicionalmente, o SPD tem uma relação muito amistosa com países latino-americanos, especialmente com o Brasil, aponta Arnaldo Cardoso, e esses laços são inclusive pautados por afinidades ideológicas, principalmente com os partidos de esquerda na sociedade brasileira, com destaque para o Partido dos Trabalhadores.”Nesse sentido, é muito provável que, não tentando corrigir uma ação errática permanente do governo brasileiro no seu relacionamento internacional, isso poderá no último ano do mandato do presidente Bolsonaro ser agravado com a mudança do chanceler na Alemanha”, prevê ele.

Viragem para pior na política externa do Brasil?

Há três anos que essa relação entre Brasil e Alemanha está bastante esfriada, considera o analista. O presidente Bolsonaro e o ex-chanceler Ernesto Araújo fizeram uma série de declarações que produziram “muito mais ruído do que diálogo” com o governo alemão, a ponto de a Alemanha suspender sua cooperação no campo de proteção da Amazônia.Contudo, pensar que o sucessor da atual líder alemã, Angela Merkel, pode ser uma pedra no sapato de Bolsonaro e do Brasil, que ele se torne um problema, não cabe. Verdadeiramente, ele vê “mais uma continuidade lamentável de uma relação difícil com o mais importante parceiro econômico do Brasil na União Europeia”.Na véspera das eleições para presidente da República e para governos estaduais em 2022, existe um conjunto de sinalizações para uma mudança do governo, afirma o cientista político, e em caso disso a política externa terá de ser profundamente revista.No governo Bolsonaro, a política externa agravou-se muito tanto devido às dificuldades do Brasil em função de uma política externa e ambiental errática, como por ser vista como uma política mais de destruição do que de preservação do meio ambiente.

Desde a posse de Jair Bolsonaro, houve “uma piora do lugar do Brasil nessa arena internacional”. Mesmo assim, o governo anterior, de Michel Temer, já teve muita dificuldade em desempenhar internacionalmente um papel de protagonismo do Brasil. Ainda mais, podemos dizer que o Brasil vive uma crise política e um enfraquecimento de sua ação internacional desde o início do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, apresenta o professor um panorama conciso.Adicionalmente, de certa maneira a situação é influenciada também pelas relações entre as potências globais como a China, Rússia e os Estados Unidos, pela configuração atual na arena internacional. A mudança do governo nos EUA não produziu ainda “um novo equilíbrio” nas relações internacionais, embora a vitória de Joe Biden tenha trazido de volta os Estados Unidos para as plataformas de negociações globais.”Havia muita expectativa na passagem de Trump para Biden”, mas, na perspectiva do analista, o governo Biden “tem produzido mais frustração do que satisfação no que diz respeito à atuação internacional dos EUA”, inclusive no assunto do meio ambiente.

Necessidade comercial recíproca, mas assimétrica

No tocante às relações comerciais entre a Alemanha e o Brasil, existe uma interdependência entre os dois, mas o interesse do Brasil é maior: agregar valor ao produto brasileiro. O Brasil é mais dependente da Alemanha do que a Alemanha do Brasil, afirma o analista.Este é um dos pontos delicados da negociação, que já tem mais de 20 anos, do acordo comercial para criação de uma área de livre comércio entre o Mercosul e a UE. Hoje ela está paralisada, inclusive com o veto alemão e francês para a continuidade do processo de implementação dessa área, que se dá em função da política errática do governo Bolsonaro. É uma agenda para ser retomada por um novo governo no Brasil.”Nós temos nichos de mercado que são interessantes: desde os produtos mais básicos chineses até os produtos mais sofisticados da Europa e Estados Unidos. Então, é sempre um mercado atraente.”

Agenda ambiental

Brasil, que é integrante do G20, joga um papel significativo na agenda ambiental pelo menos desde 1992. Há 30 anos o Brasil se apresentou perante a comunidade internacional como um ator protagônico no debate sobre o meio ambiente, ressalta o professor.Porém, mesmo que seja um ator relevante, o Brasil tem fragilidades conhecidas mundialmente. Mas, na opinião de Arnaldo Cardoso, o Brasil pode colaborar para o avanço de algumas agendas e já mostrou que pode fazer isso. A política externa durante o primeiro e segundo mandatos do ex-presidente Lula projetou uma imagem positiva da nação brasileira. Ele apostou no multilateralismo e na diversificação de parceiros, e foi no governo Lula que foi criado o BRICS, que virou um fator bastante desafiador para uma reconfiguração de poder na ordem internacional, segundo o analista.

Atual vice-chanceler e ministro das Finanças da Alemanha, Olaf Scholz, no Bundestag, 17 de novembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 01.12.2021

Atual vice-chanceler e ministro das Finanças da Alemanha, Olaf Scholz, no Bundestag, 17 de novembro de 2021© AP Photo / Markus Schreiber

Em contraste, pelo histórico do atual governo brasileiro, é pouco provável que o Brasil possa confiar em mudanças de política, particularmente na questão ambiental em função dos compromissos assumidos na COP26.Vale lembrar que, dias após a volta dos negociadores brasileiros, revelou-se que os dados sobre o desmatamento já eram do conhecimento do governo federal e foram omitidos nessa participação do Brasil na COP26.”Como nós podemos esperar que a comunidade internacional tenha confiança no governo que por três anos produziu destruição, assustou o mundo com a atitude ali, contrastando com tudo aquilo que se afirmava internacionalmente, como confiar que no último ano do mandato [de Jair Bolsonaro] vai ter significativas mudanças?”

Política não se faz só por simpatia, faz-se basicamente por interesses

Em meados de novembro, o ex-presidente Lula da Silva teve uma reunião com o vencedor da eleição parlamentar da Alemanha, em Berlim. O professor crê que a política se faz basicamente por interesses e não apenas por simpatia, mas com empatia o diálogo fica muito mais facilitado.”É previsível que, num futuro governo brasileiro, supondo um governo do Partido dos Trabalhadores, com o SPD na chancelaria alemã esse diálogo seja mais fluente”, concluiu.Há interesses entre o Brasil e Alemanha, afirma o professor, que precisam ser negociados, assim como interesses brasileiros em toda a União Europeia, sendo ela um dos principais parceiros do Brasil em todos os campos.

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