Com o fim da CPI da Pandemia nesta terça-feira (26/10), começa agora o trabalho do Ministério Público de avaliar provas e depoimentos coletados pelos senadores e decidir se investiga e denuncia as pessoas vinculadas a possíveis crimes.
O alvo de maior impacto no relatório da CPI é o presidente da República, Jair Bolsonaro, que comandou decisões do governo federal sobre a pandemia e teve papel ativo em questionar o uso de máscaras e o distanciamento social e propagar o uso de remédios ineficazes contra a doença. Ele foi acusado pela CPI de ter cometido sete crimes comuns, além de crime de responsabilidade e crime contra a humanidade.
Entenda os próximos passos e a chance de Bolsonaro ser denunciado e condenado pelos crimes apontados pela CPI:
Três caminhos para Aras
O mais relevante dos crimes comuns atribuídos a Bolsonaro é o de epidemia com resultado morte, descrito no Código Penal como “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. Essa conduta é punida com pena de prisão de vinte a trinta anos quando ela provoca morte.
O presidente também foi acusado pela CPI de ter cometido os crimes de emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, falsificação de documento particular, charlatanismo, incitação ao crime e infração de medida sanitária preventiva.
Devido ao foro privilegiado, somente o procurador-geral da República, Augusto Aras, pode investigar a denunciar Bolsonaro. Aras recebeu em mãos o relatório da CPI nesta quarta-feira, entregue por senadores da comissão, e disse que iria “avançar na apuração”, sem mencionar contra quem.
O procurador-geral terá três caminhos possíveis a respeito do presidente:
– Determinar o arquivamento, se entender que não há indícios que justifiquem prosseguir com a investigação.
– Abrir um inquérito, se decidir coletar novas provas e depoimentos.
– Apresentar uma denúncia, se concluir que já há elementos suficientes que indicam que ele cometeu crime.
Presidente já responde a inquéritos
A abertura de um inquérito contra Bolsonaro seria uma saída estratégica para Aras. Dessa forma, o procurador-geral não seria acusado de inação, mas tampouco provocaria no presidente o desgaste de uma denúncia. O inquérito também levaria tempo considerável para ser conduzido, empurrando a questão para o futuro.
Em abril de 2020, Aras abriu um inquérito contra o presidente, autorizado pelo Supremo, para investigar se ele interferiu na Polícia Federal após acusação do ex-ministro da Justiça Sergio Moro. A apuração ainda está em andamento. Em 6 de outubro, Bolsonaro informou que aceitaria depor presencialmente sobre o caso.
Holofotes estarão em Aras, que avaliará se dá continuidade às investigações da CPI contra o presidente
A Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu em julho desde ano um segundo inquérito contra o presidente, para apurar se ele cometeu prevaricação no caso da compra da vacina indiana Covaxin, após o órgão ter sido pressionado pelo Supremo a se posicionar.
O presidente é alvo de outros dois inquéritos no STF, mas que não foram abertos a pedido da PGR. Um deles apura vazamento de investigação da Polícia Federal e o outro os ataques do presidente à urna eletrônica. Ambos foram instaurados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, após queixa-crime de ministros do Tribunal Superior Eleitoral.
Tempo é curto
No caso do crime de epidemia com resultado morte seria possível, em tese, denunciar Bolsonaro se houver indícios de que ele conscientemente buscou uma estratégia de alcançar a imunidade de rebanho da população por meio da contaminação, por exemplo ao desincentivar o uso de máscaras ou o distanciamento social e promover medicamentos sem eficácia preventiva, que aceleraram a propagação do vírus e resultaram em mais óbitos.
Diversos estudos já mostraram que o discurso e as políticas de Bolsonaro e seu governo influenciaram o comportamento de brasileiros sobre a pandemia e provocaram milhares de mortes evitáveis. Cabe agora à PGR avaliar se há elementos suficientes para motivar uma denúncia criminal.
Dois aspectos reduzem a chance de que Bolsonaro seja denunciado por Aras por crimes comuns ligados à pandemia. Um é a proximidade do procurador-geral com o presidente, escolhido à margem da lista tríplice elaborada pelos membros do Ministério Público e cotado para uma possível vaga no Supremo. O outro é o tempo.
O atual mandato de Bolsonaro termina em 14 meses, e não é certo que um novo inquérito sob Aras seria concluído nesse período. Além disso, a iminência da campanha e da eleição seria considerada no cálculo político do procurador-geral sobre a conveniência de denunciar o presidente.
Câmara serve de escudo
Se, mesmo assim, Aras denunciar Bolsonaro por crime comum ao Supremo enquanto ele é presidente, a Corte não poderia iniciar a análise do caso antes de receber uma autorização da Câmara dos Deputados. É necessário o apoio de 342 deputados, dois terços do total, para dar andamento do processo.
O resultado das últimas votações de interesse do governo na Câmara indica que Bolsonaro tem o apoio fiel de mais de um terço dos deputados, o suficiente para bloquear uma denúncia do tipo.
A gestão do presidente tem sido generosa em relação às emendas parlamentares, o que contribui para que deputados sigam do lado do governo. Além disso, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), eleito ao posto com o apoio de Bolsonaro, já demonstrou diversas vezes que não apoia medidas drásticas contra o presidente.
Riscos na vida pós-Planalto
Quando o presidente deixar o governo, porém, perderá o foro privilegiado e investigações contra ele serão encaminhadas à primeira instância. O Ministério Público poderá apresentar novas denúncias contra Bolsonaro, que serão decididas por juízes de primeira instância.
Isso aconteceu, por exemplo, com o ex-presidente Michel Temer. Enquanto estava no cargo, o emedebista foi denunciado três vezes pela então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Em duas, a denúncia foi bloqueada pelo plenário da Câmara, e na última o presidente já estava no final do mandato e não houve apreciação pelos deputados.
Quando Temer saiu do Planalto, os processos foram enviados à primeira instância. O vice-presidente chegou a ser preso preventivamente duas vezes, por um caso não relacionado às denúncias apresentadas quando ele era presidente.
Bolsonaro poderá ser alvo de outras denúncias e investigações depois que deixar o Planalto
Alguns senadores da CPI afirmaram que, se Aras não reagir ao relatório do comissão, acionariam o Supremo por meio de uma ação penal privada subsidiária, que permite que vítimas de crimes tomem a iniciativa em caso de omissão do Ministério Público.
Essa saída teria algumas dificuldades. Uma delas é que se a PGR decidir abrir um inquérito ou arquivar o tema, não seria possível alegar que ela tenha se omitido. A segunda é a necessidade de incluir nesse tipo de ação as vítimas ou representantes de vítimas. Como a pandemia teve efeitos coletivos, haveria um debate jurídico sobre se seria possível responsabilizar o presidente a partir do caso concreto de algumas vítimas ou de seus familiares.
Crime de responsabilidade
O relatório da CPI também aponta que Bolsonaro cometeu crimes de responsabilidade, por violar o direito à saúde pública e a probidade administrativa, que poderiam justificar um processo de impeachment.
A CPI não pode pedir o impeachment do presidente. O relatório, como o documento informa, “ficará disponível para que qualquer cidadão denuncie o Presidente da República por crime de responsabilidade”.
Já há pelo menos 139 pedidos de impeachment apresentados contra Bolsonaro, por temas variados, inclusive relacionados ao gerenciamento da pandemia. A instauração de um processo de impeachment depende de Lira, que já indicou que não tem interesse em fazê-lo.
Os deputados fieis ao governo na Câmara também o protegem desse desfecho. E, com a proximidade das eleições, a chance de um processo de impeachment contra Bolsonaro ser deflagrado fica ainda menor.
Crime contra a humanidade
O relatório também afirma que Bolsonaro teria cometido crimes contra a humanidade previstos no Tratado de Roma, que tem força de lei no Brasil. Esses crimes são julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado na cidade de Haia, na Holanda.
A CPI considera que o presidente cometeu “ato desumano que afete gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental” na condução da pandemia, especialmente pela forma como seu governo lidou com a crise do oxigênio em Manaus, apontada como um “laboratório humano” para os medicamentos do “kit covid”, e pelas ações e omissões em relação à proteção dos povos indígenas contra a covid-19.
Uma cópia do relatório será enviada ao TPI, que então decidirá se inicia um procedimento contra o presidente sobre o tema. O TPI já recebeu pelo menos cinco representações criminais contra Bolsonaro, que o acusam de genocídio de comunidades indígenas e tradicionais, crime contra a humanidade na gestão da pandemia e crime contra a humanidade ligado ao desmatamento da Amazônia.
Um dos requerimentos para o TPI punir pessoas é comprovar que os meios para tentar responsabilizá-la em seu próprio país esgotaram-se, o que, no caso de Bolsonaro, ainda levará tempo.