Os vícios históricos da política brasileira explicam por que 26% dos eleitores de Bolsonaro querem migrar para Lula
Qualquer pesquisa eleitoral realizada a 16 meses do pleito tem uma margem enorme de incerteza. Não foi diferente com o levantamento sobre a próxima disputa presidencial realizado entre os dias 17 e 21 pelo Ipec, instituto que sucedeu o Ibope Inteligência. Mas os resultados foram reveladores. Primeiro, o mais óbvio: Lula lidera a corrida, com 49% das intenções de voto, contra 23% do atual presidente. A diferença pode ser explicada pelo inferno astral de Bolsonaro, com múltiplos fatores de desgaste: o escândalo das vacinas, a péssima gestão na pandemia e a economia que continua desastrosa para a população, apesar de números macroeconômicos aparentemente positivos. A consequência disso, em números: a aprovação de Bolsonaro caiu para 24% e a reprovação chegou a 49%. A economia vai precisar melhorar muito e os programas populistas deverão fazer milagres para salvar o mandatário em 2022, o que é pouco provável.
Porém, o resultado mais surpreendente se refere aos eleitores desiludidos de Bolsonaro. Mais da metade (53%) já rejeita o ex-capitão. E impressionantes 26% declaram que vão migrar para Lula no ano que vem. Ou seja, vão pular de um extremo ao outro do espectro ideológico. Esses dados certamente não são definitivos sobre o cenário em outubro de 2022, mas dizem muito sobre a realidade brasileira. Primeiro, em relação ao perfil dos eleitores que mudaram de lado radicalmente: em linhas gerais, moram no Nordeste, em cidades do interior com até 50 mil habitantes, ganham até um salário mínimo e têm até o ensino fundamental. São os próprios eleitores de Lula, que optaram pelo ex-capitão em 2018 e agora retomam a antiga preferência. O ex-presidente também se beneficia de sua imagem quase santificada na região. Além disso, a anulação das suas condenações na Lava Jato, que foi técnica, ganhou um ar de absolvição, ou seja, de que a justiça foi feita para um inocente. A vitimização favorece Lula, assim como beneficiou Bolsonaro no atentado à faca em 2018.
Em um nível mais profundo, essa biruta política diz muito sobre o messianismo ainda entranhado em grande parte da sociedade, que continua à espera de um salvador da pátria. Fernando Collor conseguiu encarnar a figura de um “caçador de marajás”, assim como Dilma Rousseff era a “mãe do Bolsa Família” e Bolsonaro virou o “mito” que limparia a política brasileira. São construções políticas que prosperam num País com frágil tradição partidária e pouca memória política. O sistema partidário favorece a criação de legendas de aluguel, não de agremiações com conteúdo ideológico. E o Centrão prepara reformas eleitorais exatamente para impedir o fortalecimento das legendas. É por isso que busca afrouxar as cláusulas de barreira, retomar as coligações proporcionais para eleições majoritárias e introduzir o distritão. Os defeitos do presidencialismo de coalizão são convenientes para uma elite política que se beneficia da barafunda judiciária e do fraco controle anticorrupção.
Isso não muda tradições históricas: o persistente patrimonialismo, cultivado por todo o espectro político, e a tentação populista. Lula conseguiu se transformar no esquerdista que mais serviu aos grandes empresários, no crítico do FMI que se transmutou em xodó dos EUA e das grandes potências. É uma versatilidade surpreendente que Getúlio Vargas também exibiu: chegou ao poder por um golpe de Estado e praticou uma ditadura feroz inspirada no fascismo, para voltar ao poder nos braços do povo e como ícone da esquerda. Ainda é cedo para dizer se o lulismo vai se transformar em um novo getulismo, mas a sedução populista permanece no País e no continente. Basta dizer que há uma moda entre cientistas políticos de esquerda de enaltecer essas velhas práticas políticas que tanto mal fizeram à America Latina para justificar as virtudes do peronismo argentino e a evolução do petismo para o lulismo. Na visão deles, a exceção latino-americana seria uma nova e moderna face da democracia. Trata-se de um contorcionismo conceitual. O fenômeno continua sendo uma expressão do atraso político.
O resultado da pesquisa, que sugere Lula e Bolsonaro como duas faces de uma mesma persona política, não quer dizer que o aperfeiçoamento institucional seja impossível. Outros cientistas políticos apostam no amadurecimento democrático proporcionado pela redemocratização e em valores que foram incorporados à sociedade desde os anos 90, como a rejeição à inflação. Seja qual for o panorama político para 2022, espera-se que diminua a nefasta polarização e proporcione um debate mais maduro para o País, que vá além da disputa entre antipetismo e antibolsonarismo. E que também seja mais promissor do que a surrada busca pela terceira via, cujo debate já ganhou ares de deboche, com a adesão até de um bolsonarista enrustido como o apresentador José Luiz Datena.