Aliança do Centrão com Bolsonaro sob a batuta de presidente da Câmara emplaca urgência em projetos que desmontam a política ambiental, privatizam estatais ou que alteram a estrutura tributária sem antes passar por comissões e com pouco debate
A expressão “passar a boiada”, cunhada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles no ano passado, ganhou outra dimensão desde que Arthur Lira (PP-AL) assumiu a presidência da Câmara dos Deputados. Enquanto os olhos da sociedade civil brasileira estão voltados para a CPI da Pandemia no Senado, deputados federais liderados por Lira correm para aprovar, sem debate público e, muitas vezes, sem nem passar por comissões, uma série de projetos de interesse do Governo Jair Bolsonaro e de deputados do Centrão que impactam a vida da população. O desmonte das políticas ambientais é uma das prioridades, resultando em maio numa lei de licenciamento ambiental que, de acordo com os especialistas, na prática acaba com qualquer regulação do Estado. O projeto que, segundo os críticos, incentiva a grilagem de terra (PL 2633/2020) e o que dificulta novas demarcações de terras indígenas (PL 490/2007) são os próximos da fila, e Lira tem pressa para aprová-los ―nesta terça, inclusive, a Câmara aprovou que o PL 2633 vai ser votado em regime de urgência, ou seja, pulando várias etapas de discussão. Na área econômica, a privatização da Eletrobras foi aprovada na Câmara e no Senado com jabutis que até mesmo defensores da medida se voltaram contra ela. Agora é a vez da privatização dos Correios, reforma tributária, reforma eleitoral… A velocidade é desnorteadora para um Parlamento acostumado com comissões e audiências públicas que imprimem um ritmo mais lento ao debate —como é comum em democracias.
Há vários fatores que explicam essa nova fase do Governo Bolsonaro, segundo especialistas que acompanham a dinâmica parlamentar. Suely Araújo, que foi consultora legislativa da Câmara dos Deputados entre 1991 e 2020, tendo sido cedida ao Ibama para exercer a presidência do órgão fiscalizador entre 2016 e 2018, aponta para uma mudança política com relação aos dois primeiros anos. “Bolsonaro tinha uma articulação fraca no Congresso e medidas provisórias, como a MP da grilagem ou da conversão de multas ambientais, caíram. Também havia um poder de veto exercido pelo deputado Rodrigo Maia, que avisou que não seriam votados projetos polêmicos, como o que autoriza mineração nas terras indígenas, enquanto ele estivesse na Presidência da Câmara”, explica Araújo, hoje especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima. Para ela, o chamado presidencialismo de coalizão, em que o poder Executivo tem o poder e domina a pauta do Congresso, não estava valendo nos dois primeiros anos de Governo.
A saída para Bolsonaro, como foi aventada por Salles, foi “passar a boiada” durante a pandemia em questões normativas, resoluções ou portarias que não precisam do Congresso, mas que poderiam ser revertidas facilmente depois por outro Governo. Mas o quadro mudou com a chegada de Lira à presidência em fevereiro deste ano e a aliança formada entre Bolsonaro e o Centrão, destaca Araújo. O que existe hoje é uma conciliação de interesses entre os interesses do Governo e de um Parlamento que é considerado o mais conservador em muitos anos. “A bancada ruralista sempre foi forte, mas eles querem hoje aproveitar esse resto de Governo Bolsonaro, que é aliado ao Centrão e à ala mais arcaica dos ruralistas, para tentar aprovar muita coisa”, argumenta Araújo.
Além dos projetos de leis que incentivam a ação dos grileiros de terras, retiram direitos dos povos indígenas, possibilitam a mineração em suas terras e ameaçam aqueles povos que estão isolados, há ainda outros menos visíveis, como o que preveem a desconstituição de assentamento de reforma agrária (PL 4348/2019) ou o que pode abrir as portas para a fragmentação de comunidades indígenas (PDL 28/2019). Para Araújo, o esforço deve ser o de não deixar pautar os projetos. Porque, se pautar, a oposição e os ambientalistas perdem. “Fiquei três décadas na Câmara e nunca vi uma vontade tão grande de desconstrução. A política ambiental é regulatória em todo mundo, ela é estruturada em regras estabelecidas ao longo do tempo. E esse Governo vê regra como algo que precisa tirar da frente”.
Regime extraordinário de votação
Outro fator é que a pandemia obrigou o Congresso a adotar um regime extraordinário de deliberação remota que resultou no fechamento das comissões temáticas que avaliam o projeto e acelerou a tramitação de projetos. Esse mecanismo esteve em vigor até dezembro, e depois disso as comissões na Câmara voltaram a funcionar. Mas o momento é ainda de transição, com votações ainda remotas. Muitas pautas seguem indo direto ao plenário em processos muito céleres, com urgência declarada. “Quando um projeto mobiliza muito a sociedade civil e interesses políticos, não dá para estimar em quanto tempo é votado. Às vezes nunca”, explica João Feres Júnior, cientista político da IESP/UERJ e coordenador do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB). Ele ressalta que, em tempos normais, “existe muita movimentação no plenário, nas comissões, muitos grupos de interesse fazendo pressão direta nos parlamentares”. Tudo isso ficou de lado com a pandemia. “Toda vez que você fecha isso, quem tem dinheiro arruma um jeito de estar lá, de se comunicar. Quem tem menos maneira de fazer isso são as pessoas mais simples. Então você elitiza o processo”, explica.
Um economista que acompanha os trabalhos legislativos, e que preferiu não se identificar, afirma que “as comissões são um conhecido obstáculo ao avanço de projetos”, e que uma tática comum dos governos para atrasar votações “é pedir para sejam analisados por mais comissões”. Sem elas, os textos vão direto a plenário. Por outro lado, Feres Júnior argumenta que isso também tem beneficiado projetos da esquerda, como o de autoria da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) que promovia correções no auxílio emergencial —e que acabou vetado por Bolsonaro. “Não é só boiada”, afirma. O campo progressista também emplacou um projeto que proíbe despejos durante a pandemia e outro que obriga o Governo federal a garantir internet nas escolas públicas. “O truque talvez seja o seguinte: passa um monte de coisa, mas o Governo pode vetar”.
Além do contexto de pandemia e da entrada de Lira no comando da Câmara, Feres Júnior aponta para a mudança no regimento da Casa, aprovada em 12 de maio, que tirou o poder da oposição de fazer obstrução e atrasar a votação de um projeto. “Essa mudança de regimento foi bastante centralizadora, deu mais poder ao presidente. Foi quase que um golpe interno”, explica.
Reação e reversão no Supremo
Um efeito colateral da pressa é a qualidade dos textos dos projetos. No caso da privatização da Eletrobras, lobbys atuaram para que fossem colocados jabutis que resultarão na obrigação de o Governo comprar energia de termoelétricas e no aumento da conta de luz. Históricos defensores da privatização se voltaram contra o texto. Outra reforma econômica em xeque é a tributária enviada pelo ministro Paulo Guedes e que se encontra na Câmara. Por um lado, existe a proposta de taxar em 20% os lucros e dividendos de empresas, o que criou resistência no mercado. Por outro lado, mesmo aqueles empenhados na reforma enxergam problemas que agravarão problemas estruturais futuros. A onda de críticas desacelerou a tramitação e fez com que Guedes e Lira se empenhassem em reduzir resistências.
Lira também vem tentando dar urgência na votação da privatização dos Correios, o que também gerou uma série de reações contrárias. Na última semana, o procurador-geral da República, Augusto Aras, afinado com o Governo Bolsonaro em diversas pautas, manifestou ao Supremo a inconstitucionalidade da venda da empresa. É no STF, dizem Araújo e Feres Júnior, que recaem as esperanças de que algumas dessas leis sejam revertidas. “Existe uma agenda de desmonte da Constituição de 88 que o Supremo provavelmente vai barrar. Não integralmente, mas vai dar problema no Supremo. Sobretudo quando se mexe em direitos de minorias e de povos tradicionais”, explica o coordenador da OLB.