‘Falar em guerra’ é assumir confronto com a China, diz analista sobre discurso de Bolsonaro

Após Bolsonaro insinuar que a China teria criado o novo coronavírus como parte de uma “guerra química”, mas sem citar diretamente o país, a Sputnik Brasil conversou com um especialista para entender como isso pode afetar a chegada de insumos chineses utilizados na produção de vacinas.

Em uma cerimônia ocorrida nesta quarta-feira (5) no Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro voltou a fazer ataques à China, ainda que sem citar o nome do país. Durante o seu discurso, o presidente afirmou que ninguém sabe ao certo a origem do vírus da COVID-19, mencionou o termo guerra química e indagou: “Será que não estamos enfrentando uma nova guerra?”.

“É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas está aí. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês”, afirmou Bolsonaro.

Com essas declarações, Bolsonaro vem sendo acusado de colocar em risco o envio de vacinas e de insumos por parte da China, que poderia atrasar essas remessas como forma de retaliação, em um momento no qual o Brasil demonstra extrema necessidade de contar com elas.

Durante a sessão da CPI da COVID-19 no Senado, o presidente da Comissão, o senador Omar Aziz (PSD-AM), afirmou que a declaração de Bolsonaro poderia “piorar” a obtenção de insumos e vacinas produzidos na China para o Brasil, e criticou a atitude do presidente.

“Eu acho que essa situação nossa em relação a ter insumos vai piorar com essa declaração […] Ele [Bolsonaro] chama de guerra química, e tal. Nós estamos nas mãos dos chineses para trazer o Insumo Farmacêutico Ativo [IFA]. Nós não temos produção de IFA aqui. E nem vamos ter tão cedo. A gente depende da Índia para alguns insumos. Depende da China para outros insumos. Não é momento de a gente cutucar ninguém”, afirmou o senador do Amazonas.

O presidente da Frente Parlamentar Brasil-China, o deputado Fausto Pinato (PP-SP), foi além e assinalou em nota que a atitude de Bolsonaro mostra que ele é uma pessoa “irresponsável, desequilibrada e sem noção de mundo”, com algum tipo de “doença mental” que o faz “confundir realidade com ficção”.

Por sua vez, o Instituto Butantan, que é responsável pela produção da vacina chinesa CoronaVac no Brasil, também manifestou temor de que as declarações do presidente possam atrapalhar as remessas de matéria-prima da China. Segundo o diretor da instituição, Dimas Covas, citado pelo Estadão Conteúdo, “todas as declarações nesse sentido têm repercussão. Nós já tivemos um grande problema no começo do ano e estamos enfrentando de novo o mesmo problema”. 

Em entrevista à Sputnik Brasil, o professor de Direito Internacional Público e coordenador do Núcleo de Estudos Brasil-China da FGV Direito Rio, Evandro Menezes de Carvalho, afirma que Bolsonaro já deixou claro para “todos os brasileiros” que “não tem e nem quer ter boas relações com a China”.

O especialista, que também é professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal Fluminense (UFF), opina que “a criação de um inimigo externo imaginário” faz parte da estratégia política de Bolsonaro e de seus apoiadores de terceirizar as responsabilidades do governo.

“A todo o tempo, o presidente Bolsonaro procura ter um bode expiatório para depositar a culpa de todos os males que o governo dele tem causado ao país”, destaca Menezes de Carvalho.

Além disso, o especialista em Direito Internacional argumenta que essa estratégia de ataques teria dois objetivos principais: “retirar a atenção da mídia para as importantes revelações que estão sendo feitas na CPI da COVID-19 e […] fazer com que a China reaja aos seus comentários nada diplomáticos, não enviando os insumos necessários para a produção da vacina, o que dificulta ainda mais o combate à pandemia no Brasil”.

No final do mês de março, o presidente realizou uma minirreforma ministerial com trocas no comando de seis pastas, entre elas a de Relações Exteriores. Ernesto Araújo deu lugar ao embaixador Carlos Alberto Franco França, tido como mais moderado que seu antecessor. A troca alimentou esperanças de que as ofensivas do presidente Jair Bolsonaro contra a China pudessem cessar.

Na opinião de Menezes de Carvalho, com esse comentário “totalmente fora de propósito”, Bolsonaro não parece estar disposto a ouvir a ala mais moderada, que aposta em um tom mais conciliador com a China, e agora dá sinais diretos, e não através de intermediários, “como foi quando tinha então o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo”. Para o professor da UFF, o presidente parece ser uma pessoa que só consegue pensar no mundo dentro de uma lógica de confronto.

“[Quem poderia convencer Bolsonaro a moderar o tom com a China?] Olha, é difícil responder esta pergunta. Seria o agronegócio? O chamado centrão? Os filhos do presidente? Olha, eles não têm conseguido convencer o presidente a moderar o seu tom com a China, e outros nem querem essa moderação, querem um conflito mesmo. Me parece que o presidente ouve quem defende esta última posição”, avalia o especialista.

Para Menezes de Carvalho, “o risco maior é este mundo imaginário do Bolsonaro começar a contaminar, tal como um vírus, o mundo real”, e setores importantes da economia brasileira que têm grande volume de negócios com a China, tal como o agronegócio, comecem a perder as vendas para o país asiático, o que “seria um sintoma deste ambiente tóxico provocado pelo próprio presidente”.

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