Analista: Rússia ‘está no rol dos grandes parceiros estratégicos do Brasil’

Apesar do alinhamento do Brasil aos EUA anunciado pelo governo de Jair Bolsonaro, especialistas ouvidos pela Sputnik acreditam que, dentro e fora do BRICS, o governo brasileiro tem buscado manter relações pragmáticas e estratégicas com a Rússia.

Nesta quarta-feira (21), o presidente russo discursou perante o parlamento do seu país destacando atividades da Rússia junto ao BRICS e a outras iniciativas internacionais das quais Moscou faz parte. Segundo Vladimir Putin, a Rússia tenta desenvolver relações na base do respeito mútuo com a maioria absoluta dos países do mundo e pretende ampliar os contatos com os seus parceiros no quadro dos diversos blocos dos quais é membro. 

Nesse mesmo discurso, o chefe de Estado também falou sobre as mediações de conflitos feitas por Moscou e sobre seus esforços em prol da estabilidade estratégica internacional, que caminham ao lado do desenvolvimento de modernos sistemas de armamentos, inclusive nucleares. 

​Ainda de acordo com o presidente russo, apesar dessa busca de Moscou por relações baseadas na diplomacia, a Rússia é alvo constante da má vontade e implicância de determinados governos, que, inclusive, tendem a levar outros parceiros a também adotar uma atitude antirrussa. Nesse sentido, Vladimir Putin comparou a situação de alguns desse países com o comportamento do chacal Tabaqui, do livro de contos “O Livro da Selva”, do escritor britânico Rudyard Kipling, que pulava ao redor do poderoso tigre Shere Khan acreditando que este era o dono da selva e, assim, poderia lhe conceder benefícios e proteção.

“Nós vemos o que está acontecendo na vida real. Como eu já disse, tentam implicar com a Rússia de todo lado, sem razão nenhuma. E, claro, logo, em torno deles, como em torno de Shere Khan [países que ameaçam a Rússia], surgem esses pequenos Tabaqui [países que imitam as nações que ameaçam a Rússia]. […] Uivam para obter favores de seu soberano”, afirmou o presidente. 

Potência geopolítica, militar e científica

Para analisar o papel da Rússia hoje como agente multilateral, suas contribuições para a estabilidade internacional e suas relações com o Brasil, a Sputnik ouviu três especialistas da área de relações internacionais sobre esses temas. 

Cadetes russos assistem a discurso do presidente Vladimir Putin para o parlamento, em Moscou, via TV instalada no museu da Universidade Estatal Marítima, em Vladivostok

© SPUTNIK / VITALY ANKOVCadetes russos assistem a discurso do presidente Vladimir Putin para o parlamento, em Moscou, via TV instalada no museu da Universidade Estatal Marítima, em Vladivostok

Desde a época do Império Russo, a Rússia desempenha um papel muito importante na balança de poder do sistema internacional, conforme explica o professor de relações internacionais Roberto Uebel, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) de Porto Alegre. Se na época do império e da União Soviética esse poder esteve concentrado nas mãos de alguns poucos atores, hoje, a Rússia se apresenta como uma grande potência geopolítica, militar e científica de um mundo multipolar. 

No contexto mais recente, segundo o especialista, essa importância ficou muito evidente no combate à pandemia da COVID-19, quando a Rússia se tornou o primeiro país a registrar uma vacina contra a doença, que, após uma desconfiança inicial, agora é exportada para os quatro cantos do mundo como uma das principais armas na luta contra o novo coronavírus. 

​Ao lado dessa área científica, Uebel também destaca uma importante atuação russa no campo bélico, com a construção de bases, desenvolvimento de tecnologias militares e aeroespaciais, entre outras coisas. E essa importância dada ao poderio militar seria uma forma de sinalizar que a Rússia está preparada para eventuais ameaças à sua soberania e de seu território, que tem a maior extensão do mundo. 

Tudo isso, no entanto, vem acompanhado de uma tendência de favorecer o diálogo e a diplomacia, dentro dos “moldes russos”.  

“No ano passado, nós tivemos aquele conflito na região separatista de Nagorno-Karabakh, na fronteira entre Azerbaijão e Armênia, que são dois parceiros históricos da Rússia. E quem mediou o conflito? Foi justamente Vladimir Putin. É justamente o governo russo que chama os líderes armênio e azeri para o diálogo, na tentativa de encontrar uma solução. Porque uma instabilidade naquela região traria ainda mais instabilidades futuras para a Rússia, que, até hoje, tenta lidar com a situação no leste da Ucrânia.”

Ambiente de bullying criado pelo Ocidente

Analisando as tensões entre a Rússia e alguns países europeus nos últimos anos, a professora Isabela Gama, especialista em segurança e teoria das relações internacionais e BRICS e pesquisadora pós-doutoranda da Escola de Comando e Estado Maior do Exército (ECEME), argumenta que, apesar do papel “crucial” russo para o multilateralismo e para o equilíbrio global de forças, em termos regionais, Moscou ainda precisa se esforçar mais para dissipar receios que cresceram na Europa Oriental e na região do Báltico de 2014 para cá.

O problema, segundo ela, é que esses Estados que alegam se sentir ameaçados pela Rússia desde a reintegração da Crimeia ao país são membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e, como tais, também representam uma ameaça à segurança da Rússia. E, diplomaticamente, esses e outros supostos adversários russos pouco têm feito no sentido de buscar um entendimento e essa coexistência pacífica defendida por Moscou.

“E o que eu tenho visto nos últimos anos é que essa tentativa tem vindo muito mais da parte da Rússia, de uma diplomacia bastante aberta inclusive, e menos de outros blocos.”

Inserida em um ambiente de constante bullying e sanções por parte do Ocidente, a Rússia, de acordo com Gama, busca frequentemente essa modernização das suas capacidades de defesa também como uma forma de demonstrar força e de restabelecer de maneira constante a sua identidade de grande potência no cenário internacional. Mas, para além disso, o país tem clara a ideia, segundo a especialista, da importância de se buscar a paz se preparando também para a possibilidade de que “essa paz nunca chegue”.

“A OTAN continua se expandindo, quando prometeu que não se expandiria. Então, acho que é uma posição bastante plausível que a Rússia está tomando. Acredito que qualquer outro Estado que estivesse sendo basicamente empurrado para o canto tomaria uma atitude como essa”, afirma a pesquisadora à Sputnik Brasil, destacando o contexto de bullying contra a Rússia como um ambiente repleto de fake news, teorias conspiratórias e busca por um bode expiatório.

BRICS, Brasil e Rússia

A participação da Rússia no BRICS, bloco formado também por Brasil, Índia, China e África do Sul, é uma importante via de inserção russa no cenário internacional, sobretudo para um país que busca a multilateralidade como forma de atuação diplomática. É o que afirma, também em entrevista à Sputnik, o professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Charles Pennaforte, diretor-geral do Centro de Estudos em Geopolítica & Relações Internacionais (CENEGRI). 

“Sob essa perspectiva multilateral, eu acho que a Rússia desempenha um papel muito importante dentro desse cenário contemporâneo”, pontua o acadêmico, destacando que essa participação russa nas discussões e mediações internacionais provoca certo desconforto a países como os Estados Unidos, que, independentemente do governo, ainda olham para Moscou com olhos da época da Guerra Fria.

Devido às hostilidades com que a Rússia tem de lidar historicamente e às consequentes preocupações com a sua segurança, as participações do país em fóruns e organismos internacionais também tem uma função, além de todas as outras, segundo Pennaforte, de servir de plataforma para Moscou deixar claras suas intenções para aqueles que demonstram preocupação com o fortalecimento das capacidades militares russas. 

“Ela procura sempre pontuar isso seguindo as dinâmicas das relações multilaterais, nos fóruns internacionais, ONU, Conselho de Segurança, BRICS e Organização para Cooperação de Xangai. É uma forma que a Rússia tem de garantir a sua segurança. Mas acredito que ela não tenha nenhum interesse em expandir ou ir contra nenhuma nação. Hoje [21], o Putin falou isso claramente em seu discurso.” 

Presidente russo Vladimir Putin e presidente brasileiro Jair Bolsonaro em Brasília, durante cúpula do BRICS (imagem de arquivo)

© SPUTNIK / RAMIL SITDIKOVPresidente russo Vladimir Putin e presidente brasileiro Jair Bolsonaro em Brasília, durante cúpula do BRICS (imagem de arquivo)

Apesar das expectativas de uma aliança automática do Brasil com os Estados Unidos durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, ao contrário de outros autodeclarados aliados dos EUA, o Brasil, ao longo desses últimos dois anos, não chegou a adotar uma postura totalmente antirrussa, se reunindo aos esforços liderados por Washington para tentar isolar Moscou.

Mesmo durante a administração de Donald Trump, suposto amigo pessoal de Bolsonaro, o governo brasileiro foi “chamado à realidade”, de acordo com o professor da UFPel, por empresários, grupos políticos e diplomatas que conseguiram explicar a falta de sentido em se criar problemas com outro parceiro do Brasil no BRICS, cujo banco, inclusive, foi responsável pela concessão de créditos ao Brasil de maneira muito mais vantajosa do que o país teria se fosse recorrer ao Fundo Monetário Internacional ou ao Banco Mundial. 

​Para Brasil e Rússia, a institucionalização do Banco do BRICS [Novo Banco de Desenvolvimento], a propósito, significa, no entendimento de Roberto Uebel, a afirmação de uma parceria histórica, iniciada pouco depois da independência brasileira, retomada, contemporaneamente, no final dos anos 1980 e fortalecida durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT). 

O Brasil, ele sublinha, sempre “jogou” na dualidade, marcada por um alinhamento aos EUA, mas “com relações históricas e profundas com a Rússia”. E isso não foi abandonado nem mesmo pelo atual governo brasileiro.

“Hoje, no atual governo, eu diria que nós mantemos relações muito pragmáticas e que não desconsideram a importância da Rússia nas relações internacionais contemporâneas.” 

Dentro do BRICS, Uebel vê o Brasil como um país que mantém relações estratégicas com a Rússia, boas relações com a Índia e que se afastou um pouco da China devido a algumas tensões geradas pela gestão de Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, algo que o atual chanceler, Carlos França, já estaria tentando resolver.

“A África do Sul, como todo o continente [africano], não é prioridade do governo brasileiro. O presidente do Brasil, até hoje, não fez nenhuma visita oficial à África, fechou escritórios da Apex-Brasil no continente africano, fechou embaixadas que eram estratégicas no continente. Então, a África em si não é uma prioridade para a política externa brasileira”.

Já a Rússia “está no rol dos grandes parceiros estratégicos do Brasil”, diz o analista.

​Para a professora Isabela Gama, embora o novo governo norte-americano pareça não estar muito interessado em ter o Brasil de Bolsonaro como um grande aliado, isso não significa, necessariamente, que o Brasil se aproximará mais da Rússia ou mesmo do BRICS como resposta.  

“Eu vejo a diplomacia brasileira sendo, no momento, bastante antiglobalista. E aqui, no momento, está acontecendo de o fantasma soviético estar muito presente no imaginário do atual governo. Então, eu não sei ainda onde colocar o Brasil na agenda da Rússia ou a Rússia na agenda brasileira. Acho um momento bastante complicado ainda para se ter uma noção muito clara, mais acurada, sobre esse relacionamento.”

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