Com a polarização, estas eleições serão as mais importantes e tensas desde a redemocratização

Com o quadro de polarização confirmado, a campanha eleitoral mais importante desde a redemocratização será tensa e pode ocorrer sem debates entre os candidatos. Bolsonaro prepara-se para contestar os resultados e aposta no desafio à Justiça e na mobilização golpista no Sete de Setembro. Lula recicla velhas ideias, tenta esvaziar as candidaturas de centro e sonha em fechar a fatura no primeiro turno

As convenções partidárias confirmaram aquilo que já se desenhava desde o ano passado. A polarização entre o petismo e o bolsonarismo impediu a consolidação de qualquer alternativa de centro, mesmo no primeiro turno. Como haverá a ameaça direta do presidente às urnas eletrônicas, o pleito será o mais importante desde o fim da ditadura, pois a própria democracia estará em jogo. A campanha será curta e pode ser ter conflitos reais, diferente de todos os processos eleitorais que ocorreram a partir de 1989.

Uma das diferenças fundamentais é que, pela primeira vez, o presidente em exercício pode fracassar na reeleição, mesmo se beneficiando do enorme peso do cargo. Bolsonaro é o mandatário mais fraco a tentar um segundo mandato, e também é aquele que usou a máquina pública de forma mais descarada a seu favor, mudando a Constituição e rasgando a lei eleitoral para distribuir benesses bilionárias a menos de dois meses da votação e se cacifar nas urnas.

“Bolsonaro fala ‘meu Exército’, mas não é dele. Ele foi expulso do Exército por má conduta. Como a gente pode pensar em golpe?” Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente e candidato do PT

NO SUL Bolsonaro na Marcha para Jesus em Balneário Camboriú (SC), em 25 de junho (Crédito:Alan Santos/PR)

A candidatura governista foi lançada na Convenção do PL, no dia 24, quando o presidente perdeu a oportunidade de suavizar a imagem radical visando atingir um eleitorado mais amplo, como queria o próprio comitê. Ao contrário, ele voltou a pregar para os convertidos, mantendo o foco nos evangélicos, nos militares e no agronegócio. O evento aconteceu no Maracanãzinho, no Rio, com a participação do general Braga Netto, o quatro-estrelas escolhido para vice, e sem a presença do general Augusto Heleno (que em 2018 associou o Centrão à ladroagem). Michelle Bolsonaro destacou-se no evento com um apelo às mulheres e aos religiosos e disse que seu marido é “enviado de Deus”. Foi uma presença estratégica. Atrair o eleitorado feminino é um dos maiores problemas do mandatário, pois é o grupo em que sofre maior rejeição.

“O mesmo cara quer voltar  à cena do crime. Quis o destino que eu chegasse aqui. Estamos numa guerra” Jair Bolsonaro, presidente e candidato à reeleição pelo PL

COM DEUS E OS MILITARES Bolsonaro investiu no discurso religioso e voltou a criticar as urnas eletrônicas e a Justiça na Covenção do PL, no Rio, no dia 24. De olho no voto feminino, um dia depois se encontrou com empresárias em SP (abaixo) (Crédito:Eduardo Anizelli)

De acordo com o QG bolsonarista, o presidente será apresentado na propaganda eleitoral como o “mais cor-de-rosa” da história. A pretensão soa como pensamento mágico, principalmente depois dos escândalos em série de assédio sexual do ex-presidente da Caixa, Pedro Guimarães, um dos nomes mais próximos do mandatário. A primeira-dama é considerada a grande arma da campanha para atingir esse eleitorado, mas resiste a cumprir esse papel. Um dia depois da Convenção no Rio, ela não compareceu a um evento-chave, quando Bolsonaro participou de um almoço com 135 empresárias e executivas no Palácio Tangará, em São Paulo. Frustrou mais uma vez os estrategistas.

Modular o discurso do presidente é o maior problema da sua campanha oficial, que foi encampada pelo PL e é dirigida por Flávio Bolsonaro. A comunicação está a cargo do marqueteiro Duda Lima, que trabalha há mais de uma década com Valdemar Costa Neto. Mas o próprio presidente não tem contato direto com o profissional. A natureza da campanha virou um problema existencial para os bolsonaristas. O presidente, assim como seu filho Carlos (que manda nas redes sociais e não compareceu à Convenção), sonha em reproduzir a anticampanha de 2018, que ocorreu nos subterrâneos da internet e mobilizou adeptos pelo País com um discurso antissistema. Isso é impossível agora, já que Bolsonaro é o próprio dono da máquina pública. Lima tenta emplacar sem sucesso motes como “Sem pandemia, sem corrupção e com Deus no coração, seremos uma grande nação”. Por isso, ele já enfrenta o fogo amigo da ala ideológica e mais radical do bolsonarismo, que ganhou agora o apoio do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten.

Bolsonaro conta com as benesses eleitoreiras para se recuperar nas pesquisas e investe em um novo Sete de Setembro. Se não melhorar, pode perder o apoio do Centrão

Divulgação

Para atrair os jovens, um dos carros-chefe será a norma que permitiu o abatimento de até 99% das dívidas de estudantes que usaram o Fies. “O governo quase não divulgou a revolução que fez com esse passivo. Foi algo acachapante, que será demonstrado bem na campanha”, sonha o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (PL). Mas Bolsonaro tem um longo caminho a percorrer também nesse segmento. Divulgada na quarta-feira, pesquisa Datafolha aponta que Lula conta com 51% das intenções de votos dos jovens ante 20% do presidente.

Manipulação da fé

Diante das dificuldades eleitorais, o presidente abusa da manipulação da fé e da apropriação de símbolos nacionais, tentando reproduzir o Sete de Setembro do ano passado, turbinando-o com as comemorações do bicentenário da Independência. No Maracanãzinho, ele citou a data conclamando os seguidores a “ir às ruas pela última vez”. A menção pode ter duas interpretações. Insinua que o golpe pode se consumar nesta ocasião (daí seria um blefe) ou reconhece inconscientemente que ele não vencerá o pleito (ato falho). Aliados consideraram que foi apenas um tiro no pé, reproduzindo o erro histórico de Fernando Collor em agosto de 1992. Na época, o ex-presidente convocou apoiadores para saírem às ruas de verde e amarelo defendendo seu governo. A população saiu de preto, o que precipitou o processo de impeachment.

POPULISMO SOCIAL Durante a Convenção do PT, dia 21, Lula estava em Pernambuco com o vice Geraldo Alckmin. Ele aproveitou para visitar uma réplica da sua casa de infância em Caetés (abaixo) (Crédito:Paulo Paiva / AGIF)

Para a corrida eleitoral, o presidente conta com a maioria dos evangélicos, mas tem dificuldades entre os católicos. Espera contar com os deputados nas bases para melhorar a interlocução no segmento e reforçar a posição contra o aborto. O time conta com o deputado e cantor Eros Biondini (PL), que faz parte da Renovação Carismática Católica e é um dos idealizadores do “Cristo é Show”, um dos principais eventos de música gospel do País. Pode não ser suficiente. A Igreja não poupa críticas ao governo há meses. Recentemente, a CNBB falou em “insanidade” ao prestar condolências à família do petista Marcelo Arruda, que foi assassinado por um bolsonarista, e criticou o elevado número de armas em circulação.

O petismo, no outro extremo, fez sua largada eleitoral reforçando a velha imagem de Lula como pai dos programas sociais, especialmente do Bolsa Família. O ex-presidente não estava presente na Convenção que oficializou sua candidatura no dia 21, a portas fechadas em um hotel no centro de São Paulo. Preferiu viajar para Pernambuco, onde participou de evento com o candidato a governador Danilo Cabral, do PSB, partido que participa da sua coligação. (Cabral foi vaiado e a ex-petista Marília Arraes, concorrendo pelo Solidariedade, foi aplaudida mesmo estando ausente, o que mostra as fissuras que ocorrerão ao longo da campanha pelo País.) Foi uma viagem simbólica. O ex-presidente começou o giro no estado por Garanhuns e visitou em Caetés uma réplica da casa onde morou com a mãe, construída por militantes do PT e por familiares.

O eleitorado feminino prefere Lula. Os ricos tendem a favorecer Bolsonaro. O petista mostra um melhor desempenho entre católicos. Bolsonaro, entre os evangélicos

Ricardo Stuckert

Confiante na vitória, Lula já antecipa até como planeja governar. Disse em uma entrevista ao portal UOL que vai criar uma nova versão do PAC, que planeja uma intervenção nos preços da Petrobras e que vai criar mais ministérios. Quer se reapropriar de bandeiras antigas do PT, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida. Para reforçar o contraste como o retrocesso dos anos Bolsonaro, o petista quer usar o slogan “40 anos em 4”, emulando o governo Juscelino Kubitscheck – um delírio desenvolvimentista difícil de ser cumprido, a se julgar pelo programa econômico populista aventado pelo PT

Apelo à emoção

O apelo à emoção e à lembrança da bonança econômica nos dois mandatos do petista é estratégica, para contrastar com a volta da fome e da inflação nos anos Bolsonaro e afastar a lembrança dos escândalos do Mensalão e do Petrolão, assim como a desastrosa gestão Dilma Rousseff – sem contar o período em que o ex-presidente passou preso. A comunicação está a cargo do marqueteiro Sidônio Palmeira, que atuou nas campanhas de Jaques Wagner e Rui Costa na Bahia. Também no PT o comando não é uma unanimidade. Palmeira foi contratado após a conturbada demissão de Augusto Fonseca, marqueteiro indicado por Franklin Martins, ex-ministro da Comunicação de Lula, que foi escanteado.

Lula e o agronegócio

Papel fundamental caberá a Geraldo Alckmin (PSB). O ex-tucano continuará escalado para diminuir a resistência ao petista nos grupos religiosos e também no agronegócio. Ele vai viajar a estados de forte influência bolsonarista, num roteiro que começará por Santa Catarina e passará por Mato Grosso, Goiás e Tocantins. Em uma das investidas para ampliar a popularidade do petista entre católicos, seus aliados defendem que ele incorpore a religião a seus discursos, frisando ser batizado e crismado. Sinal desse movimento, Lula tomou a decisão de casar em uma cerimônia religiosa.

Outro calcanhar de aquiles é o agronegócio. Avaliações da equipe de Lula apontam ser “impossível” virar os votos desse segmento que ladeia Bolsonaro desde 2018. A intenção, portanto, é conquistar os produtores de pequeno e médio porte. Para isso, o petista conta com o deputado Neri Geller (PP) e o senador licenciado Carlos Fávaro (PSD), recém-integrados à campanha e aliados da família Maggi, uma das poucas gigantes do setor que pendem ao apoio a Lula. Serão frisadas, ainda, as rusgas criadas com a comunidade internacional — o atual governo travou embates com a China, principal comprador do Brasil a nível mundial — e o aumento da taxa de juros do Plano Safra.

A principal torcida de Lula é para vencer no primeiro turno. Sua equipe considera que ele precisa subir três pontos percentuais para isso. Uma dificuldade é o efeito positivo que o governo deve conseguir com a queda momentânea da inflação e as medidas eleitoreiras aprovadas à sorrelfa no Congresso (com o apoio do próprio PT, ressalte-se). Para se contrapor a esse efeito, Lula espera que o partido consiga atrair dissidentes das outras campanhas. Seus aliados seguem tentando minar a candidatura de Simone Tebet e o próprio ex-presidente entrou na negociações com o PSDB, conversando com o senador Tasso Jereissati. O PT articula com líderes do PSDB um movimento similar ao feito pelo MDB: o apoio declarado de diretórios estaduais a Lula. Uma das surpresas pode ser o apoio do PT ao tucano Marconi Perillo, adversário histórico do partido, ao governo de Goiás. Petistas tentam ainda atrair Luciano Bivar com a promessa de que este poderia ocupar a presidência da Câmara em 2023 se desistisse da sua candidatura pelo União Brasil.

Centro sem chance

Com os dois extremos consolidados (e se retroalimentando), o centro não teve chance nesse ciclo eleitoral. Ciro Gomes ficou isolado. Não atraiu outras legendas e, por isso, nem conseguiu definir seu vice. Simone Tebet precisou enfrentar até na Justiça a ala lulista do MDB para oficializar sua candidatura na quarta-feira. Mas ficou sem o vice do PSDB, já que o senador Tasso Jereissati refugou em entrar na campanha após os vários desacordos entre os dois partidos nos estados. PSDB e Cidadania confirmaram o apoio a Tebet num evento melancólico, que marcou sobretudo o desânimo das legendas com a antiga terceira via, implodida após a exclusão de João Doria da corrida.

O PT tem demonstrado uma grande confiança, quase desprezando os riscos de uma reação bolsonarista. Pode ser um erro. Segundo a última pesquisa Ipespe/XP, a distância entre Lula e Bolsonaro é de 9 pontos percentuais, a menor desde junho de 2021. O petista tem 44% das intenções de voto, contra 35% do presidente. O levantamento mostra que o mandatário vem crescendo desde janeiro, quando começou com 24% da preferência dos eleitores. Mesmo assim, a situação ainda é muito confortável para Lula. No segundo turno, o petista tem 53% das intenções de voto, contra 36% do presidente – uma vantagem de 17 pontos percentuais. Mas o mesmo levantamento traz uma péssima notícia para o chefe do Executivo, apontando como será difícil reverter o descontentamento com seu governo. Nada menos que 59% o desaprovam, e 49% o avaliam como “ruim/péssimo”.

CONTRA O GOLPE Secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin (dir.), encontrou-se com o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira: ele defendeu a democracia e o controle civil sobre os militares (Crédito:Divulgação)

O grande temor em relação ao pleito são as ameaças recorrentes do presidente ao processo eleitoral, repetidas no dia 24. Por isso, o presidente do TSE, Edson Fachin, voltou a se manifestar contra as tentativas de desacreditar as urnas eletrônicas. “O TSE não está só, a sociedade não tolera o negacionismo eleitoral. O ataque às urnas eletrônicas não induzirá o País a erro”, afirmou. Apesar do apoio do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, que passou a questionar as urnas eletrônicas, a ação bolsonarista não ocorrerá sem reações. Em viagem ao Brasil, o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, reforçou que Joe Biden vai reagir a qualquer tentativa de subverter o resultado das urnas. Disse que nos países da América deve haver “firme controle civil sobre os militares e forças de segurança”. Foi um recado direto a Bolsonaro.

Campanha curta

A campanha acidentada já tem dois momentos-chaves, o Sete de Setembro bolsonarista e a manifestação no 11 de Agosto em defesa da democracia, que promete ser histórico (leia mais à pág. 26). Essas iniciativas indicam que a própria luta pela normalidade democrática pode ofuscar a discussão sobre os problemas do País. Os debates presidenciais, um espaço vital para se conhecer as propostas, podem não ocorrer, já que tanto Lula como Bolsonaro têm evitado marcar o embate público. Isso privaria o País de uma etapa essencial em uma corrida eleitoral que será excepcionalmente curta. A propaganda eleitoral se inicia no dia 16, e o horário eleitoral gratuito, no dia 26. Trinta e sete dias depois, em 2 de outubro, as urnas serão abertas. O País vai decidir o seu futuro em situações conturbadas, e isso não deveria impedir um debate aprofundado. O eleitor merece esse respeito.

“SALVAÇÃO” Propaganda de Bolsonaro usa símbolos nacionais, traz mensagem religiosa e diz que ele representa a luta “do bem contra o mal” (Crédito:Divulgação)

O duelo de jingles
Petista repagina o “Lula Lá” com nomes da MPB na campanha, enquanto Bolsonaro apela ao patriotismo com sertanejos

As produções musicais que embalam a pré-campanha dos candidatos ao Palácio do Planalto dão o tom do que eles falarão no corpo a corpo com o eleitorado a partir de 16 de agosto. Lula quer apostar na memória — no que diz respeito aos feitos do governo e, não, em relação aos escândalos de corrupção protagonizados pelo PT. Até então, nos comícios do petista, os telões reproduziam a faixa “Sem medo de ser feliz”, uma versão repaginada do jingle “Lula Lá”, cantada por artistas da cena nacional. Mas o partido já vem trabalhando em novas trilhas sonoras. Agora, um piseiro propaga a “saudade do ex”. “Tinha casa, comida, motinha, charanga, mas depois de você desandou”, diz a letra.

CAMPANHA PETISTA Peças publicitárias de Lula exploram o saudosismo, a paternidade de programas sociais e a bonança econômica em sua gestão (Crédito:Divulgação)

A música de Bolsonaro, em outra ponta, remete ao patriotismo, com o início do hino nacional tocado ao solo de guitarra na parte introdutória, e exalta o presidente com gritos abafados de “mito” ao fundo. O sertanejo o trata como o “capitão do povo” e frisa a ligação do chefe do Planalto com a religião, além de colocá-lo como protagonista de uma luta do bem contra o mal. “Igual a ele nunca existiu. É a salvação do nosso Brasil”. Já o “Pagode do Cirão” busca lembrar a população sobre a chance de eleger um governo diferente por meio da terceira via. “Tá cansado dos mesmos de sempre, de seguir o mesmo giro? Tá na hora de olhar para o Ciro”. Um feminejo de Simone Tebet, por sua vez, faz uma aposta na “esperança” e busca explorar a “força da mulher”.

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