Diz ter sido protagonista do episódio o político e jurista Ruy Barbosa, que os ímpios do idioma agora querem mudar para Rui, mesmo sendo nome próprio, o que vai acabar também no STF, se é que já não está.
Ao chegar em casa, ele teria ouvido um barulho estranho no quintal. Não se especifica se em sua casa do Rio ou na de Petrópolis. Ao verificar, constatou que um ladrão tentava levar seus patos de criação. Ruy Barbosa surpreendeu o larápio quando este ia pular o muro, já com os patos a tiracolo, e vazou a ordem em juridiquês castiço, objetivando impedir o furto:
– Oh, bucéfalo anácrono! Não o interpelo pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes, mas sim pelo ato vil e sorrateiro de profanares o recôndito da minha habitação, levando meus ovíparos à sorrelfa e à socapa. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares da minha elevada prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica bem no alto da tua sinagoga, e o farei com tal ímpeto que te reduzirei à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.
E o ladrão, confuso, teria ficado em dúvida e perguntou: “- Dotô, eu levo ou deixo os pato?”
O jurisdiquês
Debochemos do juridiquês, mas não crucifiquemos o STF. Mas. Esta adversativa e suas variantes como, porém, todavia, contudo e não obstante infestam quaisquer sentenças ou despachos, todas louvando e às vezes fazendo autênticos panegíricos dos reús para em seguida condená-los. Ou vice-versa: quase denigrem, mas acabam por absolver. Por isso debochemos e crucifiquemos, mas…
O Brasil adora legislar e tem um respeito quase divino pelas palavras com o étimo de supremo: superavit, supérfluo, superfície e, naturalmente, super-homem. Há raízes ainda mais remotas deste super de supremo: o grego “hyper” e o indo-europeu “uper”.
Na estrutura profunda de instituições em crise no Brasil há uma situação paradoxal de um descalabro vigente hic et nunc no STF: alguns ministros não são ministros. Eles são chefes e às vezes cúmplices ou reféns do que acontece, mas ministros, não. Eles não estão lá para interpretar em instância suprema a Constituição? É isso que o nome indica: ministro do Supremo Tribunal Federal. Nem entremos na designação equivocada. Pois não deveriam ser designados ministros e, sim, juízes.
A língua do povo
O STF manda. Está nas leis. E como usos e costumes são melhores intérpretes das leis do que qualquer ordem vazada em juridiquês, na língua do povo prevaleceu um frasco jurídico de notável brevidade e esclarecimento: manda quem pode e obedece quem precisa.
Notemos, porém, uma complexa sutileza: tradicionalmente o português do Brasil usa o imperativo para pedir, e o subjuntivo para mandar. A expressão das rezas “rogai por nós” pede ou manda? “Publique-se” é uma ordem? Mudando o verbo, poder-se-ia mandar ou pedir na lanchonete “faça-se um sanduíche”?
O poeta Luís Vaz de Camões deu ordens precisas a ninguém menos que o todo-poderoso rei de Portugal: “Tomai conselho só de experimentados,/ Que viram largos anos, largos meses,/ Que, posto que em cientes muito cabe,/ Mais em particular o experto sabe”.
Mas, então, ele mandava no rei, uma vez que usou o imperativo? E note-se que usou “experto” e não “esperto”, de onde derivaram esperteza e espertalhão, que hoje sobram no Brasil, enquanto a expertise cai. O português do Brasil reluta em aportuguesar o inglês expertise.
As formas verbais
Estudando as sutis complexidades destas variações, de acordo com o contexto em que as ordens são dadas, João Malaca Casteleiro, professor catedrático aposentado da Universidade de Lisboa, falecido em 2020, aos 85 anos, publicou um livro saboroso cujo título, A arte de mandar em português (Editora Lexikon), mede a frequência com que alternamos estas formas verbais para dar ordens e preferimos ordens afirmativas em vez de ordens proibitivas.
Na década de 1960, nos exemplos que ele colheu, o português do Brasil em 64,49% dos casos prefere o subjuntivo para ordenar, e usa o imperativo em apenas 19,2% deles.
Em Portugal, a língua é a mesma, assim como em toda a África portuguesa e em outros países que integram a comunidade lusófona, mas o português europeu usa o imperativo em 42,25% dos casos para dar ordens, e o subjuntivo em apenas 43,49% deles, uma diferença de 21% no interior da mesma língua.
Podemos concluir que Portugal manda de um modo bem diferente do que se manda no Brasil. Já quando se mede a porcentagem entre ordens afirmativas (faça isso) e ordens negativas (não faça isso), o equilíbrio é perfeito: 68,49% para o Português europeu, e 68,53% para o Português do Brasil nas ordens afirmativas, e 15,25% e 15,12% respectivamente nas ordens negativas.
Pode ser que o Brasil tenha excessivos cuidados ao dar ordens, tão excessivos que raramente elas são cumpridas. E isso afetou os órgãos públicos numa escalada jamais vista nas últimas décadas, em proporção a ser analisada à luz deste livro interessantíssimo e revelador, que poderá servir de ferramenta para melhor entendermos o binômio empresa pública x empresa privada.
A gente e não agente
No exemplo que segue, sem citar nomes, é o caso de perguntar: doutor, eu levo ou não levo os patos? É documento vindo do STF. Os leitores vistam luvas para manusear e lupas para ler o lavrado.
“O texto constitucional ao empregar o signo “serviço”, que, a priori, conota um conceito específico na legislação infraconstitucional, não inibe a exegese constitucional que conjura o conceito de Direito Privado”.
No mesmo documento, lê-se também: “A exegese da Constituição configura a limitação hermenêutica dos arts. 109 e 110 do Código Tributário Nacional, por isso que, ainda que a contraposição entre obrigações de dar e de fazer, para fins de dirimir o conflito de competência entre o ISS e o ICMS, seja utilizada no âmbito do Direito Tributário, à luz do que dispõem os artigos 109 e 110, do CTN, novos critérios de interpretação têm progressivamente ampliado o seu espaço, permitindo uma releitura do papel conferido aos supracitados dispositivos”.
Descontados “por isso que, ainda que” na mesma frase, reprovados in limine por meu professor do ensino médio, o cônego Germano Peters, de saudosa memória, devoto piedoso do latim eclesiástico, idioma recomendado então para questões complexas, resta ao antigo aluno, desde há tantas décadas professor, perguntar ao STF: a gente pode levar os patos ou não? A gente e não agente, claro. Isto é, podemos ser governados por quem elegemos nas urnas ou só depois que algum ministro meta o nariz aonde não foi chamado e autorize ou reprove as providências emanadas do presidente da República?
*Deonísio da Silva é professor e escritor, Doutor em Letras pela USP, e autor de Mil e uma palavras de Direito e do romance Stefan Zweig deve morrer, entre outros 35 livros.